.

.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Orações a Um Deus Além do Teísmo Sobrenatural (1)

Quando faço uma visita a alguém doente, muitas vezes o doente ou um parente me pede para orar pela pessoa que está doente. A esperança é que a oração possa levar à cura – que Deus fará algo a respeito da doença. Obviamente, o indivíduo doente pode orar por isso, mas talvez as orações de um líder religioso sejam mais eficazes. Deus e a oração.


Uma vez fui orador em um ofício de Sábado judaico na Flórida. Quando o ofício terminou, eu ainda estava no bimah quando um membro da sinagoga pediu ao rabino que orasse por ele, já que ele estava saindo em uma longa viagem. O rabino abriu o livro de orações, o mesmo que aquele membro estava segurando, na página de uma oração de viagem e simplesmente leu aquela oração em voz alta – mas ao fazer aquilo trouxe conforto ao viajante quanto à sua viagem. Deus e a oração.


No livro "Um Novo Cristianismo Para Um Novo Mundo", o Bispo John Shelby Spong conta que em uma escola cristã, uma jovem atleta contraiu meningite. Seus colegas entendiam as promessas de Deus que eles tinham lido na Bíblia literalmente. Uma das epístola dizia “orai sem cessar”, então os estudantes organizaram uma vigília de oração de 24 horas para que orações fossem enviadas a Deus todos os minutos do dia em favor de sua jovem amiga. Eles acreditavam no que tinham lido nas escrituras cristãs – todas as coisas são possíveis, a fé pode mover montanhas, peça e Deus proverá.


Entretanto, a doença progrediu. As duas pernas da jovem tiveram de ser amputadas. Uma crise de fé se alastrou no corpo estudantil. Deus e a oração.


Esta manhã eu começo uma série de sermões em quatro partes a respeito da oração a um Deus além do teísmo sobrenatural. Alguns de vocês podem discordar de algumas ou muitas das coisas que eu direi nesta série. Apenas lembrem que nesta congregação afirmamos que todos nós estamos em nossas próprias jornadas individuais de fé, unidos em comunidade, sim, mas livres para desenvolvermos nossas próprias compreensões da verdade religiosa. Encorajo cada um de vocês a chegarem a suas próprias conclusões a respeito de Deus e a oração; deixem que esta série estimule seus pensamentos.


Agora, qualquer discussão a respeito da oração deve começar com uma reflexão a respeito de Deus. Há um Deus? Como é Deus? Deus ouve e responde orações?


Todos os exemplos que dei no início pressupõem um Deus teístico – um ser sobrenatural, um criador, uma entidade onipresente toda-poderosa que está em algum lugar e que intervém na experiência humana.


Mas quero propor uma alternativa àquele ser sobrenatural. Quero levantar a possibilidade de um Deus além do teísmo sobrenatural. Então, apesar de este sermão iniciar uma série a respeito da oração, não falarei mais a respeito de oração até a próxima semana. Esta semana será apenas a respeito de Deus. E muito do que direi a respeito de Deus agora é similar ao que já tinha falado em um discurso que dei em um seminário que tivemos aqui há alguns meses atrás.


Meu texto vem de uma lenda da antiga Israel:


Gênesis 32:23-31


Durante a noite, Jacó se levantou, tomou toda a caravana, e cruzou o rio. Depois de ter atravessado com todos os seus pertences, ele voltou ao acampamento e ficou completamente sozinho. Lá, alguém lutou com Jacó até o amanhecer. Vendo que Jacó não podia ser dominado, o outro golpeou a coxa dele, de modo que o tendão da coxa de Jacó se deslocou enquanto lutava com ele.


Então, o homem disse: “Solte-me, pois a manhã está chegando”. Jacó respondeu: “Não o soltarei, enquanto você não me abençoar”. O homem, então, lhe perguntou: “Qual o seu nome?” Ele respondeu: “Jacó”. O homem continuou: “Você não se chamará Jacó, mas Israel, porque você lutou com Deus e com homens, e você venceu”.


Uma imagem fascinante – Jacó lutando com Deus. De muitas formas, tenho passado toda a minha vida (até agora) lutando com Deus – tentando descobrir se há um Deus e se há, como é esse Deus. Marco Aurélio disse: “A arte de viver se parece mais com a luta do que com a dança”. Em minha vida na igreja, eu tenho mais lutado com Deus do que dançado com Deus.


Desde a adolescência, minha fé em Deus tem sido como uma gangorra: pra cima e pra baixo, lutando com Deus. Eu acredito em Deus, mas Deus para mim conota algo muito diferente do Deus teístico sobrenatural da ortodoxia cristã.


Permitam que eu compartilhe três pensamentos a respeito de Deus. Primeiro, a realidade de Deus está coberta de mistério; nunca podemos completamente entender ou articular a natureza de Deus.


Um professor de literatura na faculdade, disse-me uma vez: “O papel do escritor é aprofundar o mistério”. Eu penso que o papel da igreja é apreciar o mistério.


Escrevendo a respeito da popularidade de Harry Potter e do Senhor dos Anéis, o Arcebispo anglicano David Hope disse que o que as pessoas encontram nesses livros e filmes é um convite a um mundo de maravilha e mistério. Para mim, conversar a respeito de Deus é adentrar um mundo de maravilha e mistério.


Paulo disse aos antigos cristãos: “Agora vemos vagamente num espelho; conhecemos Deus apenas parcialmente”. Hoje, tudo o que temos são reflexões fragmentárias, relances parciais de uma realidade possível.


Nossas mentes funcionam mais como lâmpadas do que como o espelho de Paulo. Um espelho reflete a realidade como ela é; uma lâmpada ilumina diferentemente dependendo onde ela é colocada. Nós obtemos relances da realidade de Deus de várias perspectivas, mas sempre há mistério.


O ministro unitarista Forrest Church diz que o mistério nos alicerça na humildade e abertura. Ele disse: “Aceitar minha pequenez enquanto permaneço aberto ao desconhecido para explorar os mistérios insolúveis, cresço na fé. Ao permanecermos abertos ao desconhecido, ousamos adentrá-lo ainda mais. Crescemos em conhecimento e em ignorância, mas também crescemos em maravilha e em confiança”. E ele continuou: “O poder que eu não posso explicar ou conhecer ou nomear, eu chamo de Deus. Deus não é o nome de Deus. Deus é meu nome para o mistério que aparece gradualmente lá dentro e que arqueia além dos limites do meu ser”.


O rabino Abraham Heschel disse: “A busca pela razão acaba na praia do desconhecido; na imensa expansão além dela apenas um senso do inefável pode passar”.


Meu segundo pensamento: Mesmo em meio ao mistério, devo olhar além do teísmo para entender Deus. O dicionário define o teísmo como a crença em Deus. Então como posso acreditar em Deus se não sou um teísta? Posso fazê-lo se abandonar a noção de que Deus seja um tipo de ser; de que Deus seja sobrenatural. Para mim, Deus é encontrado na malha da própria vida. Deus é processo, talvez mais próximo da “Força” de Star Wars do que das imagens tradicionais de um ser nos céus. Deus é uma presença, uma força de vida.


Eu não posso mais entender Deus como um poder onipotente de controle que interfira nos assuntos humanos como um pássaro mergulhando do céu para salvar uns e assolar outros.


Não posso mais crer em um Deus a quem possa orar por cura e que Deus possa ou não responder com um milagre.


Não posso mais crer em um Deus que salva alguns de um acidente aéreo e incêndios, enquanto outros morrem, ou em um Deus que tome lados em uma guerra.


Deus não é um moralista cósmico que registra ofensas, punindo com o fogo do inferno. Deus não é um absoluto imutável, puramente externo a nós.

As velhas imagens de um Deus teístico, de acordo com o Bispo anglicano John Shelby Spong, são intensamente humanas – Deus fazendo coisas grandiosas, entretanto humanas. É como se projetássemos em um ser divino as coisas que não podemos fazer, assim Deus é imortal, onipotente, onisciente, sobrenatural. Nas palavras de Spong, o Deus teístico se torna “um ser humano sem as limitações humanas”. Deus, o super-herói!


Eu penso que nossas imagens de Deus sejam muito pequenas, muito limitadas. Para mim, o Deus presente nessas imagens, o Deus do teísmo sobrenatural, está morto!


Mas ainda falo de Deus, um Deus além do teísmo sobrenatural. Vários teólogos e líderes cristãos corajosos têm falado e escrito a respeito de tal Deus. Eu pessoalmente tenho tido a oportunidade de conhecer algumas dessas pessoas, especialmente nos Estados Unidos, através de meu envolvimento com o movimento cristão progressista.


Lloyd Geering, acusado e julgado por heresia, e absolvido pela igreja presbiteriana na Nova Zelândia, escreveu um livro chamado “Cristianismo Sem Deus” - ou seja, sem um Deus sobrenatural.


Don Cupitt, um sacerdote e teólogo anglicano britânico, tem escrito extensivamente a respeito de um Deus além do teísmo, querendo substituir a palavra “Deus” pela palavra “Vida”, com um “V” maiúsculo, por ele ver Deus como a própria Força de Vida.


Richard Holloway, antigo Arcebispo de Edimburgo, fala frequentemente de um Deus não-teístico.


E nos Estados Unidos, o Bispo John Spong clama continuamente por um mover além do teísmo.


E estas noções não são novas! Anos atrás, Paul Tillich dizia que Deus não era um ser sobrenatural, mas em vez disso era a “Base de Todo Ser”. Deus é o “Próprio Ser”. Para Tillich, não fazia sentido implorar a um poder externo para suprir as nossas necessidades. Ele dizia que deveríamos substituir imagens externas altas de Deus por imagens profundas internas – Deus no âmago de tudo que é, uma presença mística na qual toda pessoa pode florescer.


Tillich disse essas coisas há mais de meio século atrás. E por muito tempo, teólogos do processo da Escola de Teologia Claremont têm afirmado um Deus além do teísmo. Alfred North Whitehead, um matemático e filósofo iniciou a teologia do processo imaginando Deus como um processo divino que vem a ser dentro da vida deste mundo. Ele via Deus existindo “com” toda a realidade, não anterior a ela.


O teólogo do processo, Schubert Ogden disse: “Deus, relacionado a tudo, está continuamente no processo de auto-criação. Deus é por analogia um Deus vivo, e mesmo crescente”.


Mas pensar em Deus como processo, ver Deus como a Base de todo o Ser, é conceber o divino de uma forma muito diferente. Significa que na igreja, em vez de conectar pessoas a um ser externo, deveríamos ajudar as pessoas a encontrar formas de tocarem o infinito centro de todas as coisas. Como Spong diz: “Deus é a inescapável profundeza e centro de tudo que é”.


entretanto, a maior parte da literatura bíblica eleva uma imagem teísta de Deus, a imagem que fazia sentido no mundo antigo. Mas há, entretanto, imagens bíblicas consistentes com Deus como a Base de Todo Ser.


Os antigos hebreus chamavam o Espírito de Deus de “Ruach”, vento – era como a vozinha calma experimentada por Elias. Uma força vitalizante, o espírito de Deus, sem limites estava em todos os lugares.


A palavra grega para Espírito usada pelos antigos cristãos é “Pneuma”, ar, respiração, fôlego. Deus está presente em toda respiração.


Então, os primeiros dois pensamentos: Toda conversa a respeito de Deus começa com mistério e Deus não é um ser teístico exterior a nós mas é, em vez disso, a força de vida, a Base de todo Ser dentro de cada um de nós.


Agora um pensamento final: Os limites de minha habilidade de conceituar, unidos às limitações da língua, significam que eu frequentemente penso e falo do Deus além do teísmo sobrenatural usando metáforas e imagens humanas.


Em nossa liturgia aqui frequentemente usamos metáforas: Deus como um pai esperando pelo retorno de um filho pródigo, Deus como uma mãe segurando e ninando um bebê, Deus como um pastor cuidadoso. Precisamos de metáforas, mas precisamos também lembrar que é apenas isso que elas são!


O Bispo Spong disse: “Não estamos cientes da sabedoria antiga que sugere que 'se cavalos tivessem deuses eles se pareceriam com cavalos'? Nenhuma criatura pode conceituar além de seus próprios limites ou de seu próprio ser. Um cavalo não pode pensar ou imaginar além da experiência de um cavalo. Independentemente das pretensões humanas, isso é também verdade no que tange aos seres humanos. Nenhum de nós pode ir além disso. Se vamos falar a respeito de Deus, temos que começar reconhecendo esta limitação”.


Bem, eu sei que isso é verdade a meu respeito. Em meus sermões e orações, falo do amor de Deus, do abraço de Deus, do toque de Deus – e não há nenhum problema nisso, desde que me lembre que essas são metáforas ligadas aos limites lingüísticos.


Então, se vou usar metáforas para Deus como a Força de Vida, quais são apropriadas? Se vou personificar o Deus além do teísmo sobrenatural, como faço isso? Bem, é aí que dou um salto de fé. Sei que há muitas formas de se relacionar com a Base de todo Ser. Budistas, muçulmanos, hindus o fazem de maneiras muito significativas. Mas para mim, é através do Jesus histórico que encontro Deus e é onde encontro linguagem metafórica para descrever a presença de Deus em todo fôlego de vida.


Para mim, Deus é como o Jesus humano era. Jesus era perdoador, incondicional em sua misericórdia e amor aos outros, então eu uso metáforas como “misericordioso” e “perdoador” para falar de Deus, a Força de Vida. Jesus aceitava todas as pessoas como elas eram, então eu afirmo, em fé, que Deus, metaforicamente, aceita cada um de nós como nós somos. Deus nos ama e nos aceita com todas as nossas várias habilidades e inabilidades, em nossa variedade de raças e culturas, mesmo quando expressamos nossas sexualidade em uma variedade de formas.


Forrest Church escreveu a respeito das metáforas que ele usa para Deus. Ele disse: “Cada palavra que eu evoco para Deus é um sinônimo de liberal. Deus é munificente e mão-aberta. A criação é exuberante e abundante. Como a Base de nosso ser, Deus é amplo e abundante. Como curador e confortador, Deus é caridoso e benevolente. Deus é generoso e clemente. E Deus tem um coração sangrante que nunca para”. Metáforas para a Base de Todo Ser; metáforas para aquilo que está além de nossa linguagem.


E também precisamos criar novas metáforas para Deus como a Força de Vida. Deus, embutido em mistério e surpresa. Deus além do teísmo sobrenatural como a Força de Vida, a Base de Todo Ser, uma Presença Eterna. E Deus nas metáforas do sempre presente amor, misericórdia e aceitação. Deus, na nova fórmula trinitária proposta pelo Bispo Spong – Deus, o mistério da vida; Deus, o mistério do amor; e Deus, o mistério do ser. E semana que vem, perguntarei o que significa orar a uma Força de Vida. Amém.



(Sermão pregado por mim em 2007, na Congregação Unitarista de Pernambuco)

2 comentários:

  1. Haverá o dia do juizo final ou a segunda vinda de Jesus?Samuel Santini

    ResponderExcluir
  2. Samuel,

    A resposta a essa pergunta depende da perspectiva de cada indivíduo. Algumas pessoas acreditam que as duas coisas acontecerão de uma forma bem literal, ou seja, elas entendem as palavras bíblicas de maneira literal. Como minha fé pessoal não enfatiza a crença no "além", mas sim uma preocupação com o aqui e agora - uma preocupação em conhecer o divino nesse exato momento, em abraçar o meu próximo aqui e agora, em viver uma "existência paradisíaca" aqui e agora, em estar na "presença de Jesus" aqui e agora - não me preocupo muito com isso, ao mesmo tempo em que não vejo problema em alguém acreditar ou deixar de acreditar nisso.

    Gibson

    ResponderExcluir