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sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Cristianismo e Senso Comum (1)

"Conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês."

(João 8:32)

Eu sou um herege. Estou dizendo isso logo no começo para que ninguém se sinta enganado.

Eu sou um herege. Em muitas de nossas igrejas isso não tem mais significado algum, mas em séculos passados esta palavra teria trazido desgraça, banimento, e muito freqüentemente, morte.

O que quero dizer hoje ao usar esta palavra para descrever a mim mesmo? Duas coisas: (1) que firmemente me coloco dentro da Igreja e da fé cristã; e (2) que estou firmemente convencido que muito do que a Igreja tem ensinado como doutrina na maior parte de seus vinte séculos, e muito do que constitui a crença ortodoxa hoje, seja claramente errado.

Esta é uma declaração audaciosa. Mas eu não a faço audazmente. Faço esta declaração com medo e tremendo, movido por meu amor pela Igreja e pelo fato de que o que está em jogo é nada menos que as futuras gerações que estamos em perigo de perder. Sou movido também pelas claras conclusões da razão e uma leitura cuidadosa das Escrituras. Tem-se dito que as quatro bases de nossa fé são Escritura, tradição, razão, e experiência. Esta formulação faz sentido, mas me acho compelido pela Escritura, razão, e experiência a discordar com muito do que constitui doutrina tradicional.

Antes que eu comece meu argumento, pediria ao leitor que atentasse para três fatos: (1) Em muitos aspectos, estou apenas reivindicando para nós hoje a liberdade e diversidade encontradas dentro do próprio Novo Testamento. A maior parte da doutrina oficial da Igreja foi desenvolvida no mundo greco-romano vários séculos após Jesus de Nazaré, e não representam necessariamente a posição bíblica; (2) Para mim, reivindicar que minha posição seja correta e que (portanto) todas as outras sejam erradas não significa que eu esteja reivindicando que as outras não sejam crenças cristãs válidas. Esta é uma distinção de grande importância; (3) A Teologia, como conceitualização e explicação de nossa fé, deve de qualquer forma ser reconhecida como secundária à vivência desta fé.

Com estes três fatos em mente, argumentarei contra um sistema de crença arcaico que se tornou uma obstáculo nocivo e desnecessário a muitos investigadores honestos para quem o cristianismo, de outra forma, seria uma opção. Ademais, como doutrina oficial esta ortodoxia instila auto-dúvida em muitos pensadores cristãos, e serve para mantê-los fora da corrente principal de pensamento e vida da Igreja. É contra estas doutrinas tradicionais que estarei argumentando, e não contra Deus. Estou argumentando em favor de Deus, estou argumentando para libertar nosso entendimento de Deus da prisão destas doutrinas – doutrinas de um tempo e lugar particular que são muitas vezes consideradas como nosso destino final, em vez de placas à beira do caminho, doutrinas que são freqüentemente usadas para impedir perguntas em vez de ajudar a encontrar respostas.

Também tentarei esboçar uma alternativa viável e fiel para cristãos modernos. Chamo esta alternativa de “Cristianismo do Senso Comum”.

Não quero sugerir com isto que o Cristianismo devesse ser “racional”. Duvido que a vida e ensinos de Jesus o Cristo parecerá alguma vez racional para uma maioria de nossa sociedade. Meu propósito, ao contrário, é remover os obstáculos desnecessários e as pedras de tropeço para permitir às pessoas confrontarem a pedra de tropeço central e final: o chamado ao comprometimento que nos confronta na mensagem de Jesus de Nazaré, na compreensão que ele nos dá de Deus e do amor, da verdade e da realidade. É vital que as pessoas rejeitem ou aceitem o Cristianismo por causa desta mensagem e desafio centrais, e não por causa de uma estrutura teológica secundária e desnecessária que muitos de nós pensamos ser obsoleta e incompreensível.



Por “senso comum” quero dizer a visão de mundo compartilhada, ou as suposições básicas, com as quais abordamos e entendemos nosso universo. Refiro-me ao senso comum de como este universo funciona.

Este senso comum não permanece estático. Ele muda de era em era e de cultura em cultura. E muito freqüentemente os preceitos de nossa fé são apresentados em palavras e conceitos que refletem um senso comum que é muito diferente do nosso hoje em dia. Ainda assim, os discernimentos e a validade do cristianismo não estão confinados a nenhuma era ou cultura. Então, o desafio para nós é conceituar nossa fé cristã de forma que não seja dependente do senso comum de um tempo diferente, de uma forma que seja compreensível para nós hoje.

Uma observação final: minha intenção tem sido a de apresentar meu caso em linguagem acessível a pessoas leigas. Evitei o excesso de notas de roda-pé e referências, e tentei evitar linguagem técnica e jargão teológico. A discussão da doutrina básica é muito importante para confiná-la à publicações técnicas e aos seminaristas. Ela pertence a todos os que estão tentando seguir Jesus o Cristo.



Senso Comum

"Então venha e discutiremos." (Isaías 1:18)

O que quero dizer quando afirmo que nosso senso comum é diferente agora do que foi, por exemplo, na Palestina do primeiro século ou no Império Romano do quarto século? Como é o nosso senso comum diferente agora do que foi nos dias nos quais a Bíblia foi escrita e nossa doutrina foi formulada?

Para ilustrar, considere o exemplo de uma tempestade. Uma tempestade é uma ocorrência suficientemente comum. Mas, suponha que você quisesse saber por quê uma tempestade particularmente severa e destrutiva tivesse atingido sua localidade – o quê você faria? Você escolheria palitinhos entre sua família e vizinhos para saber quem seria o culpado? Você mataria um bode e examinaria suas vísceras, ou consultaria um oráculo para ver o que o prefeito teria feito de errado, ou faria uma oração e esperaria inspiração divina?

Claro que não. Você quereria dados meteorológicos. Você quereria responder sua dúvida com referências a coisas como sistemas de alta e baixa pressão, frentes frias, correntes de vento, umidade, e pressão barométrica. Você provavelmente apenas consultaria a informação do tempo no jornal ou na TV, completa com fotos de satélite de todo o país. Isto é simplesmente o senso comum.

Não importa que haja poucos de nós que realmente entendam o que tudo isso significa, que poucos entendam como um pouco de ar pode ser mais pesado que o resto do ar, ou o que ionização seja, ou porque frentes de tempo fazem com que o vento sopre ou a chuva caia em um lugar em vez de outro. É nosso senso comum que o tempo seja explicado pelo tipo de informação provido pela meteorologia. Mesmo que não confiemos na previsão do tempo que o repórter do tempo fez para amanhã, não temos dúvida que ele ou ela possa explicar o tempo de ontem, incluindo a explicação do porquê a previsão original não se tenha cumprido.

Todos nós sabemos que nem sempre foi assim. Em tempos bíblicos era o senso comum das pessoas que o tempo seria explicado com referência a conjuntos de fatos muito diferentes. A tempestade em questão, por exemplo, seria explicada com referência à ira do Deus (ou deuses) que a controlava(m).

Assim, no Livro de Jonas, quando Jonas tenta fugir para Társis para escapar do chamamento do Senhor e o navio é atingido por uma violenta tempestade, a tripulação supõe que a tempestade seja causada pela fúria de um deus para com alguém a bordo. Então eles tiram a sorte para determinar quem é o responsável por trazer isto sobre eles. Isto é percebido pelo autor do livro como sendo uma abordagem apropriada e sensata ao problema. O procedimento funciona e Jonas é corretamente apontado como sendo o culpado. Ele confessa e é atirado ao mar à sua própria sugestão, fazendo com que o mar se acalmasse, com que o navio fosse salvo, e com que os marinheiros cressem no Deus de Jonas.

Este senso comum de como explicar o tempo não está confinado ao Livro de Jonas. Do grande dilúvio à seca infligida sobre toda Israel por causa dos pecados do rei Acab (I Reis 17), ao grande vendaval que matou os filhos de Jó, o tempo era explicável tendo-se como referência Deus (ou deuses, em outras religiões) e a satisfação ou a insatisfação divina com o povo. Conseqüentemente fazia sentido explicar uma tempestade, tirando-se a sorte para determinar quem havia enfurecido os deuses, ou tentando-se descobrir o que o rei havia feito de errado, ou consultando-se um profeta ou talvez um oráculo que leria as entranhas de um bode sacrificado.

Obviamente, nosso senso comum de como explicar o tempo mudou desde então. De fato, a forma como entendemos o mundo passou por uma grande transformação através dos séculos. Nossa compreensão do tempo é apenas um exemplo de uma diferença básica da maneira como entendemos e explicamos o mundo ao nosso redor. Não há nenhuma maneira de escapar do fato de que nossa abordagem de senso comum ao universo, nosso senso comum de como ele funciona, é muito diferente do senso comum dos autores bíblicos e dos formuladores da doutrina cristã ortodoxa.

De forma geral, tratamos nosso mundo como sendo um universo de “sistema fechado”. Nossa suposição coletiva é a de que os eventos que ocorrem em nosso mundo sejam causados por outros eventos e circunstâncias em nosso mundo. A explicação de uma tempestade é encontrada na meteorologia, não na teologia; estudando-se umidade e pressão do ar, e não tirando-se sortes ou consultando um oráculo. A vitória ou o fracasso em uma batalha são explicados ao se compararem as forças dos exércitos, pelas táticas dos comandantes e pelas ações dos soldados, e não pela intervenção favorável ou antagônica de Deus. A prosperidade de um país é explicada em termos de recursos naturais, de uma população sadia e produtiva, e de políticas econômicas sólidas, e não em termos de benção sobrenaturais sobre um povo merecedor e escolhido.

Tudo isso é o senso comum. Mas não é o senso comum da Bíblia. A Bíblia enxerga um universo de dois “andares”: ou seja, há eventos que ocorrem aqui no mundo natural, que podemos conhecer e examinar, e eventos que ocorrem no território sobrenatural, usualmente além de nosso conhecimento direto. Ademais, há comunicação aberta entre estes dois reinos, de forma que eventos no mundo natural são às vezes explicados por causas no mundo sobrenatural.

Para entender como a relação entre estes dois andares foi concebida, imagine uma bola de borracha sólida. Geograficamente, claro, pensava-se que as atividades de Deus se centravam nos céus acima de uma terra plana. Mas usaremos essa bola de borracha sólida como uma metáfora metafísica para ilustrar como pensava-se que os mundos natural e sobrenatural interagiam.

A superfície dessa bola representa o mundo finito natural. A bola como um todo, incluindo a superfície, representa o território das atividades de Deus. Tudo o que está abaixo da superfície representa a magnitude do sobrenatural que não está ao alcance de nossa visão e que não é diretamente conhecível. Mas não há limite definido que separe a superfície natural da superfície total da qual ela é parte. Espera-se que ações na superfície causem reações dentro, o que por sua vez causa efeitos na superfície. Eventos visíveis na superfície podem ter causas sobrenaturais invisíveis, e de fato podemos razoavelmente inferir tais causas sobrenaturais do que nós vemos acontecer ao nosso redor.

Com esta visão do universo, este senso comum de como ele funciona, é inteiramente razoável explicar uma tempestade como sendo a fúria de Deus, ou uma vitória em uma batalha como tendo sido causada pela intervenção favorável divina. E isto cria um problema para nós. Como podemos entender a Bíblia quando ela assume um senso comum diferente do nosso? Como abordamos uma escritura sagrada que não apenas explica eventos diferentemente da forma como explicaríamos, mas que também tem uma compreensão muito diferente do que conta como uma explicação razoável?

Antes que tentemos nos dirigir a estes problemas, entretanto, devemos responder de forma justa àqueles que negam até mesmo que este problema exista. Estou afirmando que a Bíblia tem um senso comum diferente do que temos, e que portanto há um problema de como se relacionar os ensinos e narrativas da Bíblia a nós hoje. A suposição aqui é que não mudaremos nosso senso comum, e isto põe este senso comum moderno a julgar os relatos bíblicos.

Há muitos argumentos que podem ser usados contra esta posição: primeiro, de que não há necessidade de se adaptar ou interpretar a Bíblia desta forma porque este “senso comum moderno” é muito incomum; segundo, que a atual popularidade de uma crença ou ponto de vista não é garantia de sua veracidade, então a Bíblia não deve ser adaptada para se encaixar ao entendimento de um tempo particular; terceiro, que a Bíblia não pode ser adaptada a este senso comum, porque este senso comum exclui Deus; e quarto, que se nosso senso comum discorda da Bíblia, então devemos mudar nosso senso comum, porque a Bíblia é veraz.

Um: Este Senso Comum Moderno é Incomum

Eu concordo. Por “senso comum moderno” queremos dizer a compreensão básica de que para se explicar os eventos e circunstâncias deste mundo natural devemos olhar para outros eventos e circunstâncias dentro deste mundo natural. Não explicamos o tempo ou a prosperidade com referências ao sobrenatural.

No mundo como um todo, aqueles que têm essa compreensão são sem dúvida uma minoria. E aqueles que têm essa compreensão e são sempre consistentes com ela em todos os aspectos de suas vidas são em número muito reduzido.

Isto significa que podemos ignorar isto? Significa que não temos de nos preocupar em interpretar a Bíblia para estas pessoas? Não. Não apenas é contrário à nossa fé excluir quaisquer grupos de pessoas, como ignorar este senso comum seria excluir o futuro. Aqueles que agora compartilham deste senso comum são aqueles que têm melhor absorvido a compreensão científica moderna. Como isto permeia através dos sistemas educacionais para mais e mais pessoas, uma porcentagem maior de pessoas terá este senso comum moderno. Se o Cristianismo continuar a se prender a um senso comum do passado e não se adaptar ao senso comum do futuro, ele se tornará uma mera relíquia histórica.

Dois: Popularidade Não É Garantia de Veracidade

Mais uma vez concordo. Completamente. A popularidade comum de qualquer crença não é garantia de sua veracidade. Nós já estivemos errados antes como uma espécie inteira, e sem dúvida alguma estaremos novamente. O fato de que mais de nós terá este senso comum moderno no futuro não significa necessariamente que ele seja certo.

Se for assim, então por que escrituras de milênios, e doutrinas cristãs de quase dois mil anos, deveriam se acomodar ao senso comum de uma era particular?

As grandes verdades da fé cristã são eternas, mas a maneira como estas verdades são expressas devem se encaixar ao entendimento de um tempo e lugar específicos. Ademais, estamos convencidos de que nosso senso comum de como o mundo funciona seja correto. Até que estejamos convencidos do contrário, devemos nos prender a esta compreensão. Fazer algo diferente seria desonesto. E negar nosso senso comum seria negar um aspecto importante de quem somos.

Sou uma pessoa da minha idade e de minha visão de mundo. Eu me aceito e até mesmo celebro a mim mesmo como tal, e não posso aceitar um sistema de crenças que negaria o que sou. E se seguimos este senso comum em nossas ações e crenças diárias, e muitos de nós o fazemos, então seria intelectualmente desonesto suspender este senso comum quando consideramos o território da religião. Não servimos a Deus abandonando nossa integridade intelectual.

E o fato continua de que eventos específicos neste mundo físico não podem se explicar como sendo causados por seres sobrenaturais num “estalar de dedos”!

Três: Este Senso Comum Não Deixa Espaço Para Deus

Se nosso senso comum moderno de como o mundo funciona é o de que ele seja essencialmente um sistema fechado, com eventos físicos finitos sendo explicados por causas finitas físicas, há algum espaço para Deus? Ou nos tornamos vítimas do pensamento científico ateísta e do humanismo secular?

Se o último for o caso, se nosso senso comum moderno exclui Deus, então de fato seria uma tarefa impossível tentar interpretar a Bíblia ou a fé cristã com esta compreensão. Mas nosso senso comum moderno não exclui Deus. Explicarei depois como a ciência moderna, e um senso comum informado por ela, provê uma estrutura para se entender a presença de Deus. Primeiro, entretanto, devemos dar uma olhada em como chegamos à situação presente na qual o avanço da ciência pode ser interpretado (embora de maneira errônea) como sendo a retirada de Deus.

Voltemos ao senso comum da Bíblia. Representamos isso imaginando uma bola de borracha sólida, a superfície sendo o mundo finito, o todo sendo o domínio de Deus, sem nenhuma linha divisória distinta entre o natural e o sobrenatural. Nos últimos mil anos, entretanto, o pensamento cristão ocidental tem delineado uma linha divisória distinta e rígida e, assim, empurrado Deus para um canto com ela.

Diferentes fatores contribuíram para isto. Um foi a idéia clássica da perfeição de Deus, que manteve que se Deus era perfeito deveria ser imutável (e, portanto, não afetado pelos assuntos deste mundo). Isto também implicava uma separação muito definida entre este ser perfeito e o nosso mundo bagunçado, imperfeito.

Outro fator foi o costume antigo de usar Deus para explicar tudo aquilo que não entendemos. Quando entendemos a causa natural de algo, a explicamos usando a ciência; quando não entendemos suas causas naturais, a explicamos atribuindo-lhe a Deus. A suposição fundamental aqui é que um evento possa ser explicado ou pelas leis naturais ou com referência a Deus. O problema com isto, claro, é que quanto mais entendemos sobre nosso mundo natural, menos espaço deixamos para Deus.

Então se desenvolveu um senso comum de que havia um mundo natural e um mundo sobrenatural, e que apesar de o primeiro depender do segundo, havia uma linha definida entre os dois que normalmente não era cruzada. Podemos representar este entendimento, pensando em duas bolas separadas: uma representando o mundo finito, natural, dependente para sua existência da outra bola que representa o mundo sobrenatural, mas girando bem sozinha de acordo com suas próprias leis naturais. Entre as duas esferas há um espaço que é atravessado apenas por um ato “extraordinário”.

Este, por séculos, tem sido nosso entendimento de um milagre: deve ser um evento que não pode ser explicado pela ciência, que pode apenas ser compreendido como uma invasão do sobrenatural. Alguns autores bíblicos foram capazes de ver certos eventos como o resultado de causas naturais compreensíveis e também como milagres, tal era a mistura do sobrenatural com o natural. Por algum tempo, entretanto, tem se admitido que um evento deva ser o resultado ou de uma causa terrena ou de um milagres, ou natural ou sobrenatural. Um milagre real tem de ser uma exceção às obras normais da natureza, do contrário não é um milagre. Tem de ser o resultado da intervenção de Deus.

É esta compreensão de como Deus age – por meio de milagres – que não deixa espaço para Deus quando combinado com nossos avanços no conhecimento científico e nosso senso comum moderno. Não deveria ser surpreendente que uma teologia que tenha saído de um senso comum não se encaixe com um senso comum diferente. O que temos aqui é (1) um senso (de muito tempo atrás) de que eventos físicos que não entendamos possam ser atribuídos à ação especial de Deus, e (2) um senso comum de que todos os eventos físicos sejam entendidos como sendo os resultados de causas finitas. É a combinação destes dois que aparentemente não deixa espaço para Deus.

Por si mesmo, então, este senso comum moderno não exclui Deus. O que se faz necessário é uma teologia que explique a presença e ações de Deus de uma forma que seja consistente com este senso comum, uma teologia que não deixe Deus nas periferias inexplicáveis de nossa ignorância. E é isto que tentarei desenvolver mais à frente neste livro, uma teologia que seja, de alguma forma, mais próxima do conceito bíblico da mistura do natural e do sobrenatural do que da tradição recente de duas esferas separadas. Em vez de se pensar que Deus aja por meio de milagres (no sentido tradicional), pensaremos que Deus esteja presente nos processos de nosso mundo, no contexto no qual vivemos.

Quatro: Se Nosso Sendo Comum Discorda da Bíblia, Então Estamos Errados

Esta última objeção é muito familiar. “A Bíblia está certa, então qualquer um que discorde dela está errado”. Ponto final. Fim de conversa.

Embora seja às vezes difícil encarar este ponto de vista, ele é muito popular e importante, e certamente constitui a opinião da maioria nos últimos dois mil anos. A questão real aqui é: o que significa abordar a Bíblia fielmente? E podemos fazê-lo enquanto mantemos nosso senso comum?...



5 comentários:

  1. Rev. Gibson dois aspectos que eu gostaria de indagar:
    Eu também acho que a Bíblia não pode ser lida e interpretada literalmente, acho que muito do que há é simbolico (Genêsis e outros), acho que ela é fruto da experiência de um povo com sua relação com Deus, portanto humana e sujeita a falhas, porém acho que muito do que ela contém possuí algo do Divino (Isaias narra a Paixão de Cristo mais ou menos 700 anos antes)penso que só Deus falando através do profeta poderia ter essa capacidade. Então como definir a Bíblia, Divina ou Humana?
    E essa pasagem de Josué eu também penso que um Deus que é todo amor não poderia ordenar tantas mortes, então como interpreta-la??
    Um abraço !
    Graça e Paz!
    Fernando-SP.
    fer.

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  2. Oi Fernando!
    Eu, pessoalmente, não vejo problema algum em afirmar que a Bíblia seja um produto humano (o que ela é, definitivamente) e que ao mesmo tempo possua algo divino a seu respeito. Isso porque, muito do que está na Bíblia é um registro da experiência que aquelas duas antigas comunidades (a antiga Israel e os primeiros seguidores de Jesus) tiveram com Deus. Bem, eu certamente não veria todas as passagens proféticas que a tradição cristã subsequentemente usou para identificar Jesus como profecias messiânicas, já que muitas delas falam claramente de outras coisas - mas já que elas foram interpretadas da forma que foram pela tradição cristã, não vejo nenhum problema em manter essa perspectiva por aqueles que estão convencidos por elas (falo isso, pois muitas passagens que a igreja usa como profecias messiânicas, sempre foram interpretadas pelos hebreus como citando coisas que haviam ocorrido no passado)...De qualquer forma, o que quero dizer é que na Bíblia há coisas que entendemos como sendo divinas (e elas certamente o são para muitos de nós), mas isso não muda o fato de a Bíblia ser um produto humano, escrito por humanos (sujeitos a toda sorte de limitações); entretanto, dizer isso não significa dizer que partes da Bíblia não sejam divinas. Eu não entendo esses dois termos como sendo opostos ou contraditórios (no sentido da Bíblia), nem entendo a palavra "divino" com sentido literal - dizer que a Bíblia seja "divina" não é o mesmo que dizer que ela tenha sido escrita por Deus.

    JOSUÉ 6-8: Aquela é uma das muitas evidências de que não fazemos nenhum favor à nossa fé se tomamos a Bíblia como palavra literal de Deus. Os autores daquele relato estavam justificando o comportamento das tropas hebraicas, usando como explicação a antiga tradição de que aquela conquista barbárica era a "vontade de Deus" (a guerra santa necessária para se alcançar a "vontade de Deus" para o povo israelita). Para mim a questão é bem simples: ou eu acredito em um Deus de amor, ou eu acredito em um Deus que estaria disposto a matar quem quer que fosse para que os hebreus tivessem sua "terra prometida". As duas coisas não são reconciliáveis. Isso seria sacrificar a base do cristianismo só para afirmar que todas as palavras da Bíblia sejam a expressão de uma "verdade" literal. A teologia cristã é baseada em quatro pernas: ESCRITURA - TRADIÇÃO - RAZÃO - EXPERIÊNCIA; a Bíblia não é a única fonte da teologia cristã. Partes da tradição cristã, minha razão e minha experiência me dizem que minha fé no Deus ensinado por Jesus é incondizente com a crença de que todas as coisas escritas na Bíblia possam ser aceitas como factuais, e se esse for o fato, a Bíblia é um produto humano.

    A Bíblia é portanto um conjunto de escritos humanos que foram santificados e elevados pela Igreja para servir de "sinal na estrada" sobre a qual caminhamos, e ela ainda serve para este fim. Entretanto, eu não poderia confiar em todas as informações escritas por um viajante na Amazônia na década de 1980, muitas coisas mudaram em 20 anos, novas fotos de satélites, novas rodovias, desmatamentos, novas povoações, áreas de risco, etc; imagine só deixar que um conjunto de relatos escritos no espaço de um milênio, por pessoas que estavam limitadas pelo espaço e perspectivas de um mundo de mais de dois milênios atrás forme minha visão a respeito de tudo! A cristandade já caiu nesse erro, e a decepção foi grande (pense em Galileu, que foi condenado por sua Teoria Heliocêntrica - e isso só para citar um exemplo!) - esse é o risco que corremos quando falamos em "ou...ou"...

    Paz!

    +Gibson

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  3. E aí Gibson, tudo bem c/ você ai em Recife. Novamente estou eu aqui como mais um dos meus questinamentos, como disse sou muito indagador. Espero que não se aborreça.E faço isso porque realmente estou bastante interessado nos seus estudos. Na verdade tem me tirado varias dúvidas.
    Gibson, qual a sua visão dos milagres de Jesus???
    E também como é então que você vê interveção de Deus no mundo, pra você isso não acontece ou se acontece, como funciona??
    Um grande abraço!
    A Paz! Fernando-SP.
    fer.

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  4. E aí, Fernando?!

    Perguntas nunca me aborrecem, então, quando quiser, fica livre pra me questionar!

    Eu estarei em alguns dias continuando esta série ("Cristianismo e Senso Comum"), com um capítulo a respeito de milagres, por essa razão não me estenderei em meu comentário aqui (cheque o blog em alguns dias para o capítulo seguinte).

    Penso que à luz de tudo o que o ensino de Jesus representa, de tudo o que as boas-novas são, os "milagres" não têm nenhuma importância religiosa. Os milagres não são a mensagem central do Evangelho - na realidade, não passam nem perto disso! Os milagres relatados nos evangelhos dizem muito sobre o poder que as pessoas atribuíram a Jesus, mas não dizem nada sobre o que tenha factualmente acontecido, em minha opinião.

    Minha visão de Deus não é a de um ser sobrenatural que interfira na realidade humana - penso ser esta concepção de Deus, que chamo de "Teísmo Sobrenatural" (para usar o vocabulário de Marcus J. Borg), muito limitadora, além de infantil. O Deus que intervém na história humana, na forma frequentemente descrita no vocabulário cristão é o que chamo de Deus-Papai-Noel. Eu rejeito esta idéia. Rejeito a compreensão da palavra "milagre" como sendo algo sobrenatural, uma intervenção específica que Deus faça na realidade humana, violando as leis naturais. Creio na realidade de experiências numinosas de Deus, quando atribuímos a Deus o crédito por certos acontecimentos, mas isso revela apenas nossa própria noção da Divindade e não quer dizer que haja alguma intervenção divina da forma como geralmente isso é definido no meio cristão.

    Eu vou dar um exemplo simples: o milagre dos cinco pães e dois peixes alimentando cinco mil pessoas. Minha compreensão do universo (e conseqüentemente, de Deus) não me permite crer numa interpretação literal daquele relato. Creio que ali, o que se relata é um "milagre do coração": as pessoas que estavam dentre a multidão e que possuíam alimento consigo, foram tocadas de tal forma que se sentiram inspiradas a compartilhar seu alimento com os outros - isso, para mim, não deixaria de ser um milagre, e ao mesmo tempo, era algo perfeitamente possível para minha concepção de Deus e do universo.

    Uso a palavra "milagre" muitas vezes para descrever uma experiência numinosa de Deus, quando sinto ter tido uma experiência de alguma forma divina, mas com isso não quero dizer que creio numa divindade que possa intervir e interferir no curso normal das leis naturais. Eu estar vivo é um milagre divino. Poder usar a tecnologia para me comunicar é um milagre - mesmo sabendo que não foi Deus quem construiu o computador e os meios de comunicação digital, mas como a razão humana é um dom divino (para mim), as invenções humanas não deixam de ser um "milagre" divino, por exemplo.

    Há quatro postagens aqui neste blog de uma série de sermões que dei a respeito de deus e a oração, na primeira delas falo um pouco a respeito deste tema: http://cristianismoprogressista.blogspot.com/2008/01/oraes-um-deus-alm-do-tesmo-sobrenatural.html

    Por agora é isso, espero que possa ter respondido sua pergunta, caso contrário, estou aqui, é só me escrever!

    Paz! E que o Deus que é tanto nosso Pai quanto nossa Mãe esteja com você!

    +Gibson

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  5. Fernando

    Tentei colar a ligação para a postagem da qual falei no fim de minha mensagem anterior, mas vi que não apareceu lá. Procure por: "Orações a Um Deus Além do Teísmo Sobrenatural (1)" no arquivo de Janeiro de 2008, aqui no blog.

    +Gibson

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