Recebi um e-mail hoje que
merece uma resposta pública, apesar de eu estar um tanto cansado
dessas discussões políticas às quais fui meio que empurrado no
decorrer da semana que se passou. Meu interlocutor, em sua mensagem,
demonstrou uma certa incompreensão e preocupação de/com minhas
perspectivas políticas em relação às minhas perspectivas
teológicas. Ele afirma não compreender como um “teólogo e
ministro liberal e gay” pode ter expresso opiniões contrárias ao
“movimento popular que tomou conta das ruas do Brasil”, e afirma
que eu apenas demonstro “uma inclinação política conservadora e
direitista”.
Bem, não sei exatamente
que sentidos meu leitor atribui aos termos “liberal”,
“conservador” e “direitista”, e como creio que,
provavelmente, atribua-lhes sentidos distintos dos quais lhes
atribuo, é bom que eu defina meu posicionamento político aqui.
Em primeiro lugar –
para lidar com a adjetivação “teólogo e ministro liberal”
–, definir o sentido do que seja uma teologia liberal é algo
complexo. Acredito, porém, que os pensamentos que divulgo neste blog
são suficientes para demonstrar minha compreensão da tradição
teológica liberal. Uma coisa, contudo, posso e devo acrescentar: o
Cristianismo Liberal não é sinônimo de um “tudo é válido”,
e, para o que discuto agora, não é sinônimo de nenhuma tradição
política específica (i.e., ser um cristão ou judeu liberal não
significa, necessariamente, ser um adepto do liberalismo político).
Em meu caso específico, ademais, a Teologia Liberal que molda minha
fé não é sinônimo de Teologia da Libertação. A tradição
teológica liberal tem mais a ver com nossa atitude para com a
relação entre nossa tradição de fé e o conhecimento produzido
pelo homem – i.e., a ciência, a filosofia, as artes, a cultura
etc. Essa atitude, obviamente, influencia nossas atitudes e crenças
políticas, mas não significa que cheguemos às mesmas conclusões –
e, talvez, seja justamente a diversidade de opiniões que cristãos
(e judeus) liberais mantêm entre si, no interior de sua própria
tradição, o que mais marque a tradição liberal. Isso significa
que haverá cristãos (e judeus) teologicamente liberais que
abraçarão as mais diversas perspectivas do espectro político. Eu,
por exemplo, sou, politicamente, um liberal democrata – um
democrata que se move na tradição do liberalismo político
clássico.
Quando se fala, no
Brasil, em liberalismo político, geralmente as pessoas levantam as
sobrancelhas por tenderem a equiparar o termo à ditadura, à
violência, à antidemocracia, à exploração etc. Criou-se a
tradição de demonizar esse termo. Assim, o liberalismo político
(no Brasil, compreendido como ideologia da “direita”) está
associado, no discurso político dominante no país, à ditadura, à
não-democracia, à exploração, à permanente miséria das
“classes” menos privilegiadas. Isso, obviamente, para qualquer um
que se dê ao trabalho de ler um pouco mais, não é verdade. Ser um
liberal, por exemplo, é acreditar que a presença excessiva do
Estado na vida do cidadão é um obstáculo à sua liberdade – o
que está em oposição à compreensão de socialistas, por exemplo.
O liberalismo político emergiu, historicamente, como uma resposta
contrária ao poder coercitivo do Estado absolutista; defendendo,
assim, a liberdade política, intelectual, religiosa e econômica do
indivíduo. Conceitos como liberdades fundamentais, Estado de
direito, liberdade de pensamento, liberdade religiosa etc, são
noções básicas no pensamento liberal. Essas noções estão
intrinsecamente atreladas à minha própria tradição de fé. A
defesa desses princípios é essencial em minha compreensão e
prática políticas.
Em minha compreensão do
que seja um Estado de direito – na verdade, minha compreensão é
uma ampliação da noção clássica liberal, sendo chamada de Estado
democrático de direito –, neste vigora o império da lei. À
lei, estabelecida por meio de representantes eleitos
democraticamente, estão submetidas as relações entre o Estado e os
cidadãos e desses entre si. Não pode haver liberdade e democracia
onde não haja respeito às leis democráticas. Esta é uma
compreensão básica para minha forma de compreender a eticidade da
vida na pólis.
Por que me opus às
manifestações nas ruas, então? Bem, na verdade, não me opus às
manifestações per se. Opus-me à maneira como elas se deram.
Opus-me ao aberto desrespeito aos princípios democraticamente
estabelecidos da Constituição brasileira. O exemplo mais claro
desse desrespeito? O impedimento ao livre movimento da maioria dos
outros cidadãos! Para o meu leitor, isso é “irrelevante e
insignificante”, mas o fato é que esse é um direito estabelecido
pela Constituição Federal, e se começarmos a definir o que seja
irrelevante ou insignificante dentre os princípios constitucionais,
para onde caminharemos como uma democracia?
Ademais, essa não foi a
única razão pela qual me opus ao “movimento popular que tomou
conta das ruas do Brasil”. Opus-me aos métodos e às concepções
políticas que serviram de base ao início do movimento. Por trás do
que se iniciou em São Paulo há uma ideologia contrária ao que
defendo política, social e economicamente; há um enorme vale que me
separa filosoficamente daquele movimento. Mesmo reconhecendo que,
talvez, a maioria dos manifestantes que se levantaram no resto do
país não partilhem das bases filosóficas dos grupos que lideraram
os protestos em São Paulo – dentre eles, em várias partes do
Brasil, há pessoas que amo e respeito muitíssimo, há amigos com os
quais convivo ou convivi –, esses utilizaram dos mesmos métodos
que ferem minha noção de eticidade democrática e de minha noção
de justiça. Acredito e confio nas instituições democráticas e
constitucionais; essas são o que mantêm o Estado brasileiro de pé.
Essas instituições são necessárias à minha noção de
civilidade, e delas não posso abrir mão – pois se o fizesse,
estaria desacreditando a democracia, e como já disse, sou um
democrata.
Muitos de meus conhecidos
e leitores, incluindo meu interlocutor a quem respondo aqui, se
ofenderam com alguns de meus comentários. Ofenderam-se com minhas
escolhas semânticas. Prefiro pensar que a causa de seu sentimento
seja apenas a paixão que os levaram às ruas, e o fato de eu ter
tratado do tema enquanto a coisa acontecia. Se leram o que já
escrevi antes, saberão que sou um defensor do direito democrático e
das liberdades civis. Saberão que defendo o direito de, mesmo meus
opositores mais vocíferos, dizerem o que pensam. Saberão que, por exemplo, defendi publicamente o direito de um pastor “conservador”que prega uma mensagem percebida como anti-gay ser livre para dizer oque ele pensa, mesmo eu estando entre aqueles que ele condena. E isso
porque sou um ardoroso defensor da liberdade e da democracia. Mas a
liberdade e a democracia na qual acredito e confio só existe dentro
do domínio da lei democrática. Quando grupos minoritários de
cidadãos resolvem que o seu direito é mais relevante e mais
significante que os dos outros, não me resta outra coisa senão me
opor a eles. Protestos devem se dar dentro da lei (que, em nosso
atual cenário, é democrática) e da ordem, respeitando os direitos
de todos os demais cidadãos. Quando se abre mão disso, legitima-se
a ação de criminosos, como aqueles que arruaçaram as cidades
brasileiras nos últimos dias. Se eu posso ilegalmente interditar
vias públicas (causando o caos em cidades já tão problemáticas),
não há nenhuma razão moral pela qual possa esperar que outros
respeitem outros direitos dos demais cidadãos. É uma questão de
princípio. Se isso me torna um “direitista” e um “conservador”,
que seja, então. Não me interessam os rótulos, interessam-me os
conteúdos – e os meus conteúdos intelectuais foram expostos!
Minhas orações e minhas
ações cidadãs são sempre pelo fortalecimento da democracia neste
país! Paz a todos!
Gibson da Costa