No
mês de agosto de 2018, estudantes do programa de pós-graduação em
Teologia duma instituição onde ensino publicaram em seu jornal uma
resenha de meu último trabalho e, juntamente com ela, uma página
com uma entrevista comigo, realizada através de e-mail. Abaixo,
incluo três das perguntas que me foram feitas e as respostas que
ofereci – já que essas perguntas estão aparentadas àquelas que
recorrentemente recebo através deste e de outros canais.
“Entendemos
que o senhor, além de ministro unitarista, é também ministro da
Igreja Unida e de outras igrejas protestantes. Como consegue lidar
com essa aparente contradição?”
Bem,
não considero isso uma contradição. E não é contradição porque
não visto identidades religiosas conflitantes. As denominações das
quais participo não são “minha religião”: são, sim, minhas
comunidades – das quais herdo diferentes histórias e costumes
religiosos. Assim, não sou um unitarista; não sou um
episcopal/anglicano; não sou um luterano, etc – essas são
identidades institucionais. Se tivesse de conceituar minha identidade
religiosa, diria que sou, simplesmente, um seguidor de Jesus de
Nazaré que vivencia a experiência religiosa em comunidades
diferentes. Essas são as comunidades onde exerço o ministério
ordenado e com as quais vivencio experiências comunais do Divino.
Com
isso, obviamente, não quero dizer que as identidades denominacionais
não sejam importantes. Em muitos aspectos, elas são. Contudo, não
podem ser confundidas com o que é ser um “cristão” (se é que
essa palavra ainda possua algum sentido espiritual relevante). E isso
não deixa de ser reflexo da experiência pós-moderna da própria
Igreja: um foco menor no denominacionalismo construído em eras
anteriores. Francamente, como alguém envolvido profundamente com o
espírito ecumênico, estou mais preocupado em me identificar – em
palavras e ações – como um seguidor de Jesus de Nazaré do que
como adepto duma tradição cristã específica. E justamente porque
consigo fazer isso nessas diferentes comunidades, não há nenhuma
contradição, para mim ou para elas, nisso. As identidades
“paroquiais” dessas instituições específicas são, em minha
vida, apenas acessórias; não são “essenciais”.
“Já
lemos textos seus nos quais se refere a crenças fundamentais cristãs
como se fossem “mitos” ou “metáforas”. Isso significa que
não aceita essas doutrinas cristãs como sendo verdades?”
Tenho
um problema com o termo “fundamentais” em sua pergunta. O que
significa falar em “crenças fundamentais”? Eu não sou um
fundamentalista; e são os adeptos de compreensões fundamentalistas
os que, nos Cristianismos protestantes, se preocupam em defender
“crenças fundamentais”. Talvez devêssemos usar uma outra
expressão para discutir esse tema; assim, proponho que troquemos
“crenças fundamentais” em sua pergunta por “ideias
consensuais”.
Estou
muito mais preocupado com “teologia” do que com “doutrinas”.
A diferença entre as duas – ao menos no contexto deste nosso
diálogo – é que as doutrinas parecem se referir a
declarações dogmáticas sobre problemas específicos, enquanto a
teologia abrange um conjunto de linguagem, atitudes, ideias,
narrativas e práticas que moldam uma tradição religiosa. De certa
forma, o conceito de “doutrina” parece estar
intrinsecamente associado àquela compreensão de que religião e
denominação (=instituição religiosa) sejam sinônimos. Assim,
para quem se preocupa com isso, uma denominação professa tais e
tais doutrinas – uma lista de teses – que devem ser aceitas e
defendidas por quem quiser ser membro de tal “religião” (que,
estritamente, não é uma “religião” propriamente dita, mas
apenas uma instituição/organização que se apresenta como
representante duma religião).
Já
a “teologia“ funciona de outra forma: não se limita a
teses específicas; antes, consiste numa base mais ampla através da
qual podemos construir (e alterar) visões de mundo. Dessa forma, as
compreensões religiosas – que você chamou de “doutrinas” –
não são imutáveis, escritas sobre diamante; são perspectivas que
se alteram ao longo da experiência histórica (que, no contexto
cristão, inclui a própria experiência do Divino).
Poderia
citar, por exemplo, o caso da escravidão. A cristandade ocidental
como um todo encontrou justificativas para a escravidão em suas
próprias fontes teológicas durante séculos. Assim, muitos cristãos
e muitas instituições eclesiásticas cristãs não viam nenhuma
contradição entre ser cristão e escravizar, possuir, comprar e
vender escravos. Até, obviamente, que suas ideias teológicas
começassem a mudar! Quando a experiência social e as ideias
filosóficas começaram a ser alteradas, a teologia também sofreu
alterações: a escravidão deixou de ser a vontade de Deus e passou
a ser vista como um erro repugnante dos humanos.
Essas
alterações só demonstram, em minha compreensão, o quanto a
religião, em geral, é humana. Não há nada de essencialmente
divino na religião (enquanto sistema teológico: isto é, um
conjunto de linguagem, atitudes, ideias, narrativas e práticas) –
a religião é, sim, um reflexo de quem um determinado grupo humano é
(ou pensa ser) em sua inter-relação e em relação à sua
compreensão do Divino, mesmo que acreditem que sua religião seja um
produto Divino (e mesmo que Deus, como consequência, acabe se
tornando uma espécie de adepto dessa mesma religião).
É
justamente por a religião ser uma construção humana – ou melhor,
uma resposta humana ao mistério cósmico que a humanidade enfrenta
–, que o que esta ensina é verdadeiro. Aquelas “doutrinas”
cristãs são “verdades”, mas não são, necessariamente,
“factualidades”. Elas são verdades no contexto histórico de
certos grupos ou pessoas, em determinado momento – não o são,
necessariamente, para outros ou durante todo o tempo. Em parte, é a
confusão moderna entre “verdade” e “factualidade” que leva a
essas compreensões binárias de certo-errado, verdadeiro-falso –
que eu, de forma geral, rejeito.
Quando,
ou se, penso em “verdade”, não estou pensando no contrário de
“mentira”. Estou pensando, antes, numa interpretação da
“realidade” (que nem sempre é objetiva/factual) que se altera ao
longo da experiência histórica, mesmo quando não se perceba essa
alteração. Os Cristianismos, e todas as demais tradições
religiosas do mundo, sofrem alterações em suas compreensões e
práticas, independentemente do quão dogmáticas sejam. Por exemplo,
o “Cristo” – ou a compreensão acerca de Cristo – do
Movimento de Jesus dos primeiros anos não é o mesmo “Cristo”
dos cristãos helênicos ou romanos do segundo século de nossa era,
nem é o mesmo “Cristo” dos diferentes grupos cristãos do
período medievo europeu, nem é o mesmo “Cristo” dos cristãos
assírios do Oriente do século XV, nem o mesmo “Cristo” dos
unitaristas do século XIX, nem o mesmo “Cristo” dos pentecostais
brasileiros do século XX, nem o mesmo “Cristo” dos católicos
romanos progressistas do século XXI. Cada um desses contextos
específicos conheceu variadas interpretações cristológicas –
isto é, de quem era Jesus Cristo – que eram, até certo ponto,
distintas de compreensões variadas de outros contextos históricos.
O
que quero dizer é que nenhuma religião, incluindo os Cristianismos,
é um objeto estático no tempo. Sempre sofre variações. Assim, a
linguagem, as atitudes, as ideias, as narrativas e as práticas
cristãs estão sempre sofrendo mudanças, mesmo que essas sejam
operadas de forma muito sutil.
Essa
historicidade da fé faz com que uma compreensão
histórico-metafórica das narrativas religiosas funcione como
“verdade” para mim, mas que não funcionem como “verdade”
para outras pessoas que possuam, por exemplo, bases socioculturais
diferentes das minhas. Isso não torna (parte de) nossas perspectivas
“certas” ou “erradas”, em si, mas apenas diferentes. Como a
religião, de forma geral, não lida com fatos mensuráveis
(objetivos), mas, majoritariamente, com concepções da realidade,
rejeito a visão binária de certo-errado, verdadeiro-falso, quando
lido com a realidade religiosa.
O
mito religioso – e “mito” não é sinônimo de “mentira” –,
para mim, é um instrumento pedagógico, uma ferramenta que nos ajuda
a construir uma compreensão daquilo que está além da explicação
binária. Assim, verdadeiro-falso não diz muito sobre o mito (isto
é, a narrativa que aponta para uma verdade além da factualidade,
que ultrapassa os limites do que é objetivo/quantificável) – essa
binaridade não funciona em minha compreensão da realidade religiosa
em geral, nem da cristã em particular.
“O
senhor acredita em Deus?”
Se
tivesse de dar uma resposta direta, sem nenhuma explanação
filosófico-teológica complexa, diria que CREIO em Deus –
isto é, confio na e experiencio a realidade de Deus. O verbo
“crer” parece guardar uma ligação mais explícita com o sentido
de “confiar” que, para mim, é mais importante do que afirmar um
assentimento intelectual. (Ou seja, não sou um ateu – se
esta é a pergunta.)
Apesar
de a discussão dos verbos utilizados parecer irrelevante para um
leitor/ouvinte leigo, para um Ministro religioso, um teólogo, um
filósofo da religião, etc, os termos utilizados dizem muita coisa.
Por isso, quando falo sobre o Divino, reflito sobre a linguagem
utilizada. Essa reflexão é parte integrante de meu ofício, e
resulta, obviamente, de minha história pessoal. Minha educação
religiosa e intelectual me ensinou o questionamento. Questionar é
fazer perguntas – perguntas para algumas das quais nunca chegaremos
a uma resposta objetiva. E o questionamento, esse processo reflexivo
de fazer perguntas, é uma atividade essencialmente linguística. Daí
a preocupação com a demarcação das fronteiras de sentido para os
termos que utilizamos.
De
qualquer forma, naquele texto explico minha compreensão sobre Deus.
Paz a todas e todos!
+
Gibson