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quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

O teólogo entrevistado, o Islã e a mentecapta naturalidade


Ontem, ouvi um comentário que me fez não saber se ria ou se chorava, enquanto ouvia uma entrevista. Aquele entrevistado, apresentado como “teólogo”, resumia o cenário dum capítulo infeliz da história de 2015 – um capítulo que parece querer reescrever uma narrativa já conhecida de “caça às bruxas”. O “teólogo”, fazendo uma comparação histórica e teologicamente desinformada entre o Islã e o Cristianismo, dizia que não havia nada de naturalmente pacífico no Islã, já que – em sua opinião – só o Cristianismo era naturalmente pacífico!

Sua infeliz afirmação continha uma verdade inegável: não há nada de naturalmente pacífico no Islã!... E considero-a inegável porque, em minha visão, ideias não são naturais, conceitos não são naturais, crenças não são naturais... Logo após esse reconhecimento da não-naturalidade das ideias islâmicas, entretanto, ele inadvertidamente se contradisse, cometendo o equívoco de afirmar que essa naturalidade podia ser encontrada em sua própria tradição religiosa (da qual também partilho)!

O indivíduo cuja entrevista ouvi, aparentemente não compreendia que o Islã é uma noção contestada – assim como o Cristianismo (e mesmo a Paz). E isso porque o uso de todas essas noções é reflexivo: isto é, seu uso reflete mais o lugar onde o usuário se encontra no espectro do debate religioso/político/ideológico do que, propriamente, as continuidades e mudanças de sentido dado a eles (Islã e Cristianismo) por todo o diverso corpo de seus adeptos ao longo do tempo.

Assim, se dissermos que o Cristianismo (uma noção contestada ao menos pelas diferentes tradições autoidentificadas como “cristãs”) é “naturalmente” pacífico, a qual versão do mesmo estaríamos nos referindo? [Não poderia ser a de Jesus, já que ele não era cristão!]: À versão do imperador romano que o oficializou? À versão dos cavaleiros cruzados que dizimaram populações não cristãs? À versão dos inquisidores católicos que caçaram não-conformistas no mundo ibérico? À versão dos calvinistas bôeres que criaram/apoiavam o sistema do apartheid na África do Sul? À versão dos quakers (quacres) que proclamaram e viveram uma versão extremada de pacifismo?... É impossível falar em “naturalidade” duma mensagem quando não se consegue nem definir quem sejam seus agentes. [Para que não reste dúvida quanto à minha visão: o Cristianismo – minha fé – é uma criação histórica múltipla, e todas as suas faces são “cristãs”! Não é uma entidade ou objeto “natural”, que caiu pronto do “céu”. O Cristianismo, enquanto existir, continuará a seguir seu processo de formação – como toda e qualquer tradição de fé existente.]

É “interessantíssimo” que a maioria dos denunciadores do Islã que aparecem nos meios midiáticos, incluindo a internet, tenham uma leitura bem seletiva das fontes islâmicas. Isto é, facilmente citam trechos descontextualizados do Corão para “provar” o quão violenta é a mensagem do Islã. E isso é ainda mais “interessante” quando o assunto é política (e não exatamente religião).

Uma contextualização intelectualmente íntegra do Islã exige que incluamos aqueles antecedentes que os próprios muçulmanos utilizam como fonte para a interpretação de sua própria fé: a narrativa sobre Muhammad e os primeiros muçulmanos; a perspectiva teológica mediada pelo Corão e pelos ditos de seu Profeta; os arranjos institucionais e legais que se desenvolveram ao longo da emergência do Islã como uma força política e sociocultural; e sua própria experiência contemporânea. Grupos de fanáticos “terroristas” (lembre-se que mesmo esse conceito é contestável, se estivermos dispostos a analisar cuidadosamente a raison d'être de seu uso!) não podem ser os definidores do que mais de 1 bilhão e meio de pessoas acreditam – são elas, a partir de suas diferentes tradições e de suas próprias convicções e práticas, que devem definir suas próprias crenças.

Por que utilizaríamos citações da al-Qa'ida ou do Da'ish para definir o que os muçulmanos acreditam ser o Islã ou sua relação com a paz e com o mundo em geral? Por que nenhuma citação do atual establishment ortodoxo sunni ou shia? Por que toda uma tradição – que, na verdade, é multifacetada – seria definida por vozes marginais em seu próprio interior?

A equalização desinformada do Islã com o terrorismo e a violência é tão absurda quanto afirmar que o Cristianismo e o Fascismo, por exemplo, sejam sinônimo. O Fascismo pode ter emergido no seio duma sociedade majoritariamente (ao menos nominalmente) cristã; seus líderes podem ter se apropriado de símbolos cristãos; muitos cristãos podem ter abraçado o Fascismo; mas nada disso é suficiente para supor ou afirmar que o Cristianismo e o Fascismo sejam o mesmo – o Cristianismo é muito mais do que o pensamento ou a experiência de um certo grupo de fieis. [A comparação aparentemente exagerada, a propósito, se justifica pelo simples fato de os movimentos jihadistas serem movimentos políticos – e politizarem o Islã, utilizando-o a seu próprio favor –, de forma semelhante ao que ocorreu entre movimentos fascistas e membros do clero ou fiéis católicos italianos, eslovacos e croatas.]

O Islã não é “naturalmente” nem violento nem pacífico. Isso porque, para um não-muçulmano como eu, o Islã não é uma entidade ou objeto “natural”. É uma construção histórica. E, como construção histórica, pode ser tanto pacífico quanto violento. Tudo depende a partir de que perspectivas olhemos para seus frutos.

O Islã é uma tradição viva e multifacetada, na qual a maioria dos fiéis se esforça para discernir as ligações entre a narrativa histórica tomada como padrão exemplar e sua experiência contemporânea. Exatamente o que fazem os seguidores de todas as demais tradições enraizadas no texto escrito. Seus textos sagrados, as interpretações desses feitas pelas primeiras autoridades da tradição, as narrativas das experiências das primeiras comunidades de seguidores, e as ideias e práticas que se desenvolveram ao longo do tempo, contribuem para que os fieis judeus, cristãos, muçulmanos, etc, etc, etc, construam uma interpretação de sua fé relevante para sua experiência contemporânea – mesmo quando pensam que a única coisa que fazem é seguir o que já foi dado!... Ignorar isso, enquanto se apresenta como “teólogo”, é uma estarrecedora manifestação de ignorância voluntária!

+Gibson

sábado, 26 de dezembro de 2015

Um breve resgate da origem judaica do Natal: O mito natalino para um ministro cristão unitarista



[NOTA: Os termos e/ou trechos em grego e hebraico, ao longo do texto, são apenas transliterações.]

Começo com uma afirmação básica necessária: pouquíssimos estudiosos sérios questionam a existência de Jesus como um personagem real da história. São numerosas as fontes romanas, judaicas e cristãs sobre Jesus. Elas, obviamente, afirmam opiniões diversas a seu respeito, mas são aceitas como evidências suficientes de sua historicidade.

Quando Yeshua – o nome de Jesus em sua provável língua nativa, o aramaico (apesar de nenhum dos evangelhos explicitarem a língua falada por Jesus, pouquíssimas pessoas, além da elite dos escribas, podiam, àquela época, falar, ler ou escrever o hebraico bíblico; e os galileus falavam aramaico, não hebraico) – nasceu, seus conterrâneos viviam sob a tirania de conquistadores estrangeiros e sob o que entendiam como uma ameaça à sua identidade israelita advinda da assimilação cultural (uma ameaça recorrente à ideia duma identidade israelita ou judaica). A identidade israelita de seu povo enraizava-se na terra e no “mito” duma aliança que tornara aquela terra sua. Essa aliança mitológica era o escudo e a resistência que aquele povo tinha contra as forças imperiais romanas – uma fortaleza cultural que permaneceu de pé, mesmo depois de todas as instituições políticas e militares de Israel terem sido derrotadas.

A mitológica aliança que ligava aquele povo à sua terra emergira da compreensão que tinha das tradições israelitas. Essa compreensão advinha não do texto escrito da Torá e dos Profetas em hebraico – que pouquíssimos eram capazes de ler, de qualquer forma –, mas de seu “targum” oral. Um “targum” era uma tradução oral do texto das Escrituras que era memorizada e enriquecida por comentários, e recitada pelo “targeman” da comunidade. Essa recitação interpretativa das Escrituras contextualizava a tradição espiritual israelita para as circunstâncias de seu tempo, fazendo um amplo uso de leituras metafóricas. Dentre as muitas imagens enfatizadas por essa tradição interpretativa estava aquela do “Reino/Domínio de Deus” [basileia tou theou, no grego do Novo Testamento], que sobrepujaria todas as outras formas de reino ou domínio humano – uma forma de resistência poderosa para um povo que vivia sob o domínio estrangeiro.

Foi nesse contexto sociocultural que Miriam (Maria, em aramaico) e Yosef (José, em aramaico) conceberam a Yeshua (Jesus).

O texto grego de Mateus afirma:


tou de iesou christou he gennesis houtos en mnesteutheises gar tes metros autou marias to ioseph prin e sunelthein authos heurethe en gastri echousa ek pneumatos hagiou.” [A origem de Jesus, o ungido, foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida por ação do Espírito Santo.] (Mateus 1:18)


O mito que envolve a narrativa natalina pode obscurecer o sentido histórico das palavras acima, extraídas do Evangelho de Mateus (“...antes de viverem juntos, ela ficou grávida por ação do Espírito Santo”). Em nossa cultura, afinal, a maioria de nós foi condicionada a interpretar aquelas palavras com base nos dogmas da Encarnação e da Trindade desenvolvidos posteriormente. Mas a tradição presente nos diferentes Evangelhos testifica sobre a recorrente acusação de que Jesus fora concebido de forma supostamente ilícita. Em sua vila de origem, de acordo com o autor do Evangelho de Marcos, ela era conhecido não como filho de José, mas como “o filho de Maria” [ho huios marias] (Marcos 6:3) – o que, se factual, seria uma evidência de seu status de ilegitimidade, já que as noções de “encarnação” e “trindade” ainda não haviam sido desenvolvidas. Mesmo longe de sua vila de origem, por exemplo, quando já era um rabino conhecido, Jesus foi ridicularizado, em Jerusalém, por haver nascido como fruto de “porneias” [fornicação] (João 8:41). Os séculos de dogmas acerca duma concepção e nascimento miraculosos obscureceriam dois pontos importantes sobre a narrativa que temos sobre Jesus: 1) Por que Jesus era insultado por supostamente ser filho ilegítimo?; e, 2) Por que se desenvolveu a narrativa de que teria nascido duma mãe virgem?

Aquela pequena frase em Mateus 1:18, enfatizada acima, é uma explicação suficiente para as acusações que marcariam a vida de Jesus de que seu nascimento possuía uma origem irregular. Ao mesmo tempo, também é suficiente para explicar a origem da lendária narrativa de que sua origem era miraculosa. Os seguidores posteriores de Jesus usariam a narrativa atribuída a Mateus como base para afirmar que Maria era biologicamente virgem quando do nascimento de seu filho. E por causa disso, em nossa própria época, os leitores teologicamente não ortodoxos podem se sentir tentados a descartar o valor histórico do Evangelho de Mateus. Mas, apesar de o texto daquele Evangelho e de outros estarem repletos de elementos não factuais, ele não pode ser responsabilizado pela leitura mítica que lhe foi imposta após sua escrita.

Um exemplo da compreensão mitológica posterior do texto encontra-se em Mateus 1:23 – “...he parthenos en gastri exei kai texetai huion...” [a solteira na barriga terá e dará à luz filho] –, quando afirma que uma mulher solteira [parthenos] conceberia um filho. Na tradução daquele texto grego à língua latina, no século II, “parhenos” tornou-se “virgo”, e essa tradução posteriormente alimentou a ideia de que Maria teria sido biologicamente virgem quando concebeu e deu à luz a seu filho Jesus. O problema com esse sentido, contudo, é que os termos “parthenos” e “almah” [“mulher jovem” – o termo hebraico que aparece na referência ao texto de Isaías 7:14] não significavam “virgem” como esse termo é utilizado na tradição cristã – na verdade, nem mesmo “virgo” significava isso exclusivamente; a expressão utilizada pelos romanos para “virgem”, no sentido relativo a “castidade”, era “virgo intacta” (por que não foi utilizado na tradução latina da Bíblia?!).

Uma razão que pode ser apontada para o uso de “parthenos” para referir-se a Maria é o fato de o(s) autor(es) de Mateus querer(em) fazer uma ligação entre Jesus e antigas profecias israelitas, para substanciar a afirmação de que ele seria o Messias esperado. Assim, seu passado é ligado ao passado de Israel. Note que sua mãe se chamava Maria [Miriam, em aramaico], e Maria [ou Miriam] era também o nome da irmã de Moisés, que salvou sua identidade israelita e, consequentemente, seu chamado profético (Êxodo 2:1-10), e que também foi chamada de “profetisa” (Êxodo 15:20). Essa Maria, irmã de Moisés, era descrita também como uma “almah” [parthenos, na tradução grega]. Assim, a mãe de Jesus possuía dois traços em comum com a irmã do libertador do povo de Israel, Moisés: o nome e a condição. Se a mais antiga Maria tivera a missão de assegurar que seu irmão manteria sua identidade como um israelita e, consequentemente, se tornaria o libertador de seu povo – sendo ela mesma uma profetisa –, a mãe de Jesus tinha a missão de trazer o Messias (o Cristo) ao mundo... Pequenos detalhes na narrativa que se tornaram essenciais para a forma como a maioria dos cristãos entenderia o Natal, mas aos quais poucos estão atentos!

Obviamente, a forma como a ortodoxia cristã lidou com isso tem muito mais a ver com as influências das ideias greco-romanas no pensamento da Igreja que emergia – pense, por exemplo, nos dogmas da Encarnação e da Trindade – do que propriamente com o que os textos originais das Escrituras ou a tradição judaica tinham a dizer. Assim, ao longo dos séculos, os cristãos não teriam a mínima necessidade de conciliar algumas afirmações feitas sobre Jesus, nos Evangelhos, com o todo da tradição judaica da qual ele era parte. E a ênfase no sobrenatural, no que tange à história de Jesus de Nazaré, pode ter contribuído para que a tradição cristã perdesse contato tanto com a cultura religiosa da qual emergiu quanto com a poderosa mensagem humana presente nos relatos, mesmo que míticos, sobre sua vida.

A questão sobre a concepção de Jesus – quem era seu pai, afinal de contas? – encontra três explicações diferentes no Novo Testamento (e essas podem se entrelaçar, nas mesmas fontes, com explicações conflitantes):

  • 1) Jesus teria sido concebido através da intervenção do “espírito santo” (ainda não necessariamente entendido como uma “pessoa”), por meio dum mecanismo desconhecido. Sua mãe, assim, não tivera relações sexuais com um homem: Lucas 1:34-35 e Mateus 1:18-25.

  • 2) Jesus era, de fato, filho de José: João 1:46; 6:42; Lucas 4:22; Mateus 1:1-17 e Lucas 3:23-38 (genealogias que só poderiam ter sido desenvolvidas com base nessa suposição) – os ajustes em Mateus 1:16 e Lucas 3:23 parecem ser posteriores. A identidade de Jesus como “filho de Davi” – Mateus 1:1; 9:27; 12:23; 15:22; 20:30-31; 21:9, 15; Marcos 10:47-48; Lucas 18:38-39; Romanos 1:3; 2 Timóteo 2:8; Apocalipse 5:5, e 22:16 – implicitamente invoca essa noção, já que apenas José poderia mediar essa linhagem (Mateus 1:20; Lucas 1:27, 32, e 2:4).

  • 3) Jesus foi acusado, por alguns de seus adversários, de ser fruto de “fornicação” [porneia, no texto grego] – João 8:41 –, e tal acusação é frequentemente vista como a base para a omissão de José na identificação de Jesus em Marcos 6:3, como já apontado anteriormente.


Ou seja, os próprios livros do chamado Novo Testamento – quando compreendemos sua historicidade (a forma como foram compostos e, posteriormente, ajustados para conformarem-se à ortodoxia desenvolvida posteriormente) – oferecem uma multiplicidade de pistas sobre o personagem histórico cuja memória nós cristãos, das mais variadas expressões, honramos no Natal. Essa multiplicidade contraditória, dentre tantas outras razões, resulta do simples fato de esses escritos não terem sido compostos como registros históricos como entendemos “História” e/ou “históricos” em nossos dias. As finalidades que tinham e os públicos aos quais se dirigiam não exigiam a noção de “factualidade”.

Mas, além daqueles escritos, podemos também acessar as pistas deixadas por outros textos importantes para entender a cultura religiosa na qual Jesus cresceu. Aquela pequena e simples frase em Mateus 1:18, assim como as expressões utilizadas nos trechos citados de Marcos e João (“filho de Maria” e “fornicação”) como referência a Jesus, pode(m) ser explicada(s) pela tradição talmúdica israelita. Por “talmúdica”, a propósito, quero me referir ao Talmud, um registro de discussões rabínicas acerca da Lei, exegese, costumes, história e tradições judaicas. O Talmud é composto pela Mishnah e pela Guemara e, apesar de os registros escritos mais antigos serem posteriores ao registro dos Evangelhos, aquela tradição da Torá Oral do judaísmo rabínico já existia antes de Jesus – estando presente em trechos dos Evangelhos.

Se voltarmos à tradição de José como originário duma cidade diferente da da jovem Maria (Lucas 2:4-5) – há, hoje, o conhecimento da existência prévia duma Belém na própria Galileia, próximo a Nazaré, mas evitarei entrar nessa questão aqui –, poderemos compreender um pouco da desconfiança sobre a paternidade de Jesus levantada por seus adversários.

Independentemente de quem tenha sido o pai de Jesus, as condições sob as quais foi concebido, de acordo com o(s) autor(es) do Evangelho de Mateus, o tornariam um “mamzer”, alguém gerado através de relacionamentos proibidos (e seus descendentes até a décima geração) pela lei judaica. A não ser que Maria pudesse apresentar testemunhas de que o pai de seu filho era um parceiro lícito, de acordo com a lei, se consideraria que o pai de sua criança era um “mamzer”, um filho de “mamzer” ou outro tipo de pessoa proibida, o que automaticamente também tornaria Jesus um “mamzer” (Mishnah Ketubot 1:8-9). E isso ocorreria tanto se José fosse o pai – já que, de acordo com o(s) autor(es) de Lucas, ele vinha de outra região e, assim, não poderia haver uma testemunha confiável de sua licitude como não “mamzer” para a comunidade de Maria –, quanto, e especialmente, se o “Espírito Santo” fosse o pai de Jesus – já que não poderia haver uma testemunha da licitude dessa paternidade!

Encontrar uma tradução apropriada para o termo “mamzer”, em português, é difícil. Algumas vezes, utiliza-se “ilícito” ou “ilegítimo(a)”, mas deve-se ter em mente que o termo hebraico não se refere a uma criança nascida fora do casamento – refere-se ao fruto duma relação sexual com a pessoa errada. As relações sexuais entre pessoas não casadas, a propósito, eram toleradas, e não afetavam o status da criança – só afetariam se um dos parceiros fosse “ilícito”. Muitas traduções, em português, da primeira referência ao “mamzerut” (a condição de um[a] “mamzer”) na lei judaica, traduzem “mamzer” como “bastardo”:


Não entrará bastardo na congregação do Eterno, nem ainda a décima geração dele não entrará na congregação do Eterno. [Deuteronômio 23:3 – da tradução da Editora Sêfer]


O Talmud esclarece que essa proibição de entrada na congregação significa a proibição de casamento com um[a] israelita. Os filhos duma união sexual entre um “mamzer” e uma mulher israelita estariam, igualmente, proibidos de se unirem a mulheres israelitas. No caso específico de Jesus, a ausência de provas de que era filho de um pai lícito – fosse seu pai divino ou um forasteiro na Galileia sem referências – o tornava um “mamzer”. O que significaria que, além de ser proibido de unir-se licitamente a uma mulher israelita, estava condenado a não ter voz na comunidade. [Você poderia me questionar sobre que garantias teríamos que José, por exemplo, não teria testemunhas reconhecidas de sua licitude para unir-se a Maria. Realmente não temos. Mas as evidências nos textos apontam para o fato de que Jesus foi acusado de “mamzerut” por seus adversários – e isso, se considerarmos o testemunho dos textos evangélicos, seria uma evidência de que haveria rumores a seu respeito!]

Olhar para os relatos da vida e dos ensinamentos de Jesus considerando as diferentes possibilidades permitidas pelos textos sagrados, cotejados com outras fontes do mesmo contexto sociocultural, pode parecer simples especulação para aqueles que abraçam o mito natalino como um relato factual. Mas, para mim, abre outras portas para compreender a tradição cristã. Ajuda-me, por exemplo, a compreender melhor a ênfase na visão de Deus como “paizinho” com o qual se pode manter relação pessoal – se Jesus foi um mamzer, e sofreu discriminação por isso, seu suposto uso do termo “Abba” para referir-se a Deus teria um impacto muito maior; suas fábulas sobre crianças teriam um peso muito mais profundo.

Assim, em minha experiência espiritual, humanizar Jesus, por meio da análise de possibilidades históricas, não equivale a diminuir sua importância. Muito pelo contrário. Significa alargar o sentido da tradição. Jesus deixa de ser apenas um mito etéreo – o Cristo construído pela ortodoxia –, e se torna o homem real, que iniciou sua vida como “refugiado”, viveu como um “excluído” e, por isso mesmo, sabia do que estava falando!

+Gibson

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Feliz Natal!




Independentemente de como compreendamos as narrativas acerca do nascimento de Jesus de Nazaré, a maioria de nós cristãos, em todas as eras e terras, honra o Natal ao menos como uma celebração memorial importante para a Igreja – a comunidade dos seguidores de Jesus. Como meus irmãos e minhas irmãs de outras tradições cristãs, também celebro o nascimento e a vida de Jesus de Nazaré, o Cristo.

Confesso que, como um unitarista, não me interessam muito as narrativas lendárias sobre um suposto nascimento sobrenatural. Tenho muito mais interesse nas condições dum nascimento humano comum. A humanidade de Jesus ressoa aos meus ouvidos e me faz desejar seguir seu exemplo.

Assim, esta noite, interessa-me celebrar o nascimento do menino que seria acusado de ilegítimo, fruto de fornicação. Do garoto que, como consequência do preconceito que sofrera, ensinou uma noção acerca de Deus como um “paizinho” do qual poderíamos nos aproximar sem medo. Do rabino que ousou caminhar com aqueles menos desejados. Do Messias que me salva por meio de seu ensinamento duro e de suas exigências pesadas de amor incondicional.

É esse o nascimento que escolho celebrar no Natal. Não o nascimento dum “menino deus”; o nascimento dum menino como todos os outros meninos, que viveria a vida que todos nós poderíamos viver em nossos próprios contextos – uma vida baseada numa forma de compaixão salvadora.

No Natal, celebro o nascimento do menino que começou sua vida como um refugiado – refugiado como aqueles que deixam, hoje, regiões da África e da Ásia em busca de humanidade na Europa, nas Américas ou outras regiões de seu próprio continente de origem. Se os pais de Jesus se refugiaram no Egito, buscando escapar de perseguições, então esse Jesus humano compreenderia todos aqueles que buscam uma vida mais segura, pacífica ou próspera em outras terras.

Celebro o nascimento do homem que segurou as mãos, abraçou, beijou e comeu com as pessoas tidas como mais indignas. O homem que chamou como seus “talmudim” (discípulos) pessoas que outros mestres desprezariam...

É o nascimento desse personagem que celebro esta noite. É esse Jesus que celebro como o Rei de minha fé, como o mestre que me sinto convidado a seguir.

Vem, ó homem de Nazaré, e me ensina a encarnar tua mensagem de compaixão!

Feliz Natal a todas e todos!

+Gibson

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A "Palavra de Deus": uma resposta a Pedro


Caro Pedro,

Você está equivocado quanto à minha compreensão das Escrituras. O problema está na forma como compreendemos certos conceitos que você utilizou. O mais importante deles é o conceito de “Palavra de Deus”. Você, aparentemente, define esse conceito como sendo sinônimo exclusivo de “Bíblia”. Assim, para você, por a Bíblia ser a “Palavra de Deus”, ela teria uma origem divina – de alguma forma, tudo o que esteja escrito naquele conjunto de livros, para você, é originalmente divino. É esse seu sentido de “divindade” original que não abraço. Para mim, a Bíblia é, sim, um conjunto de textos “divinos”, mas não porque os textos tenham sido escritos já como “divinos”. As Escrituras (prefiro chamar a Bíblia de “Escrituras” para reforçar a sua multiplicidade) passaram por um processo de “divinização” – isto é, o texto originariamente humano é reconhecido como “divino” porque, para os ouvintes (a maioria dos primeiros cristãos era de ouvintes, e não de leitores das Escrituras), aquelas palavras os aproximavam do Divino e lhes mostravam o caminho,

Você consegue perceber a diferença em nossa compreensão?

Para mim, a “Palavra de Deus” é Jesus Cristo, e não a Bíblia em si. Obviamente, “Palavra de Deus” é apenas uma metáfora, não uma declaração literal. Por isso, poderia ser aplicada igualmente à Bíblia. Mas eu, pessoalmente, prefiro utilizar a metáfora apenas quando me refiro a Jesus. É por essa razão que você – como me escreveu – possivelmente nunca leu nada que eu tenha escrito se referir à Bíblia como “Palavra de Deus” (bem, você pode nunca ter lido ou ouvido, mas, na verdade, eu já me referi algumas vezes às Escrituras como tal, em contextos muito específicos). A Bíblia não pode dizer ser ela a “Palavra de Deus” por duas razões simples: 1) a Bíblia não diz absolutamente nada, quem diz são seus autores – isso parece ser uma banalidade, mas é essencial para que você desenvolva uma compreensão mais madura de sua leitura; 2) não pode haver uma afirmação na Bíblia de que ela seja a “Palavra de Deus”, no sentido que você dá ao termo, porque os autores da “Bíblia” não sabiam sobre a existência da “Bíblia”! A Bíblia, enquanto livro unitário, no singular, é uma invenção recente. As Escrituras surgiram como um conjunto de textos distintos, escritos em lugares e contextos diversos, por autores diversos, em línguas diversas e até, pelo menos, o século XVI ainda não havia sido estabelecido o cânon definitivo dos livros daquilo que hoje lemos como um livro unitário. E os homens foram não apenas os autores e tradutores dos escritos, mas também aqueles que decidiram quais desses escritos estariam nas traduções que lemos hoje!

E essa é uma das razões mais importantes para que eu não abrace sua perspectiva de origem divina das Escrituras – há muitas outras razões, mas já escrevi sobre elas naqueles textos que você citou em sua mensagem.

Ler é interpretar, e a interpretação é um processo. E nenhum cristão lê a Bíblia por si só – ou seja, o sentido que dá à sua leitura não advém apenas das palavras que encontra impressas sobre as páginas. Todos nós, quando lemos as Escrituras – ou qualquer outro texto escrito –, utilizamos em nossa ação interpretativa as ferramentas que encontramos em nosso próprio “universo cultural”. Dentre essas ferramentas estão os conceitos que já internalizamos – voluntária ou involuntariamente – sobre, por exemplo, Deus, Jesus Cristo, a humanidade, a vida, a morte etc. Assim, um católico romano, um luterano, um presbiteriano, um unitarista, um santo dos últimos dias, ou um pentecostal, podem ler a mesma porção dum texto bíblico e compreendê-lo de formas diferentes e, muitas vezes, conflitantes.

Essa noção de que as Escrituras são interpretadas, ao menos parcialmente, com base naquilo que trazemos em nossa visão de mundo, obviamente, não é geralmente aceita por aqueles que acreditam na Bíblia como tendo uma origem literalmente divina. É por essa razão que, para eles, há apenas uma interpretação válida da coleção de livros que chamamos de Bíblia – e que alguns tratam como se fora um único livro, com uma única mensagem, com uma única intenção, com uma única origem.

A multiplicidade de fontes para a ação de interpretar as Escrituras inclui o próprio texto, a tradição, a razão, e ação divina. Isto é, a maioria das tradições teológicas cristãs reconhece que há no processo de engajamento com o texto bíblico uma multiplicidade de relações. Mesmo você reconheceu isso, quando escreveu sobre a ação do Espírito Santo.

O relato que você me fez de sua experiência de “conversão” já me dá pistas sobre a origem de sua compreensão sobre a Bíblia. Se você fosse um católico romano ou um luterano, por exemplo, suas perguntas seriam diferentes e, possivelmente, as respostas às quais chegaria também seriam diferentes daquelas que abraça hoje. Da mesma forma, eu também tenho perguntas que são muito diferentes das suas quando leio as Escrituras, e, provavelmente, chego a conclusões bem diferentes das suas.

Para mim, isso não significa que você esteja essencialmente errado e eu esteja essencialmente certo em termos das questões levantadas e das conclusões às quais chegamos. Significa, apenas, que partimos de lugares diferentes; lugares que não são melhores ou piores que o do outro, são apenas diferentes. O esforço que eu, pessoalmente, faço, tanto em minha vida ministerial quanto devocional, é tentar entender o lugar de onde as outras pessoas partem. E posso garantir a você que, quando fazemos isso, nós aprendemos que é possível viver com a diferença. É só tentar mudar um pouco a perspectiva e se colocar no lugar do outro – especialmente quando esse outro busca a mesma coisa que você.

Grande abraço!

+Gibson

sábado, 21 de novembro de 2015

Sobre “uma brevíssima explicação acerca da shari'a”



Gibson da Costa

Considerando a aparente “controvérsia” causada por minha última postagem neste blog – na percepção de alguns que me escreveram e-mails nos três últimos dias, isto é –, e considerando que não tenho tempo de responder individualmente a todos eles, permitam-me fazer alguns comentários.

Não vejo muito necessidade para explicar minhas posições no que tange à relação entre “religião” e “política”. Essas já estão por demais explícitas em tudo o que tenho escrito aqui nos últimos anos, em tudo o que tenho ensinado no seminário, em tudo o que tenho publicado, e em todos as minhas prédicas. Sou um “cristão liberal” ocidental (sim, também há um sentido político muito específico nessa expressão). Afirmar isso já deveria ser suficiente para explicitar o que penso acerca da relação entre “Igreja” e “Estado”, seja quanto ao Cristianismo, seja no que tange a quaisquer outras tradições.

Não importa o que penso acerca daquilo que chamei de “Direito Islâmico”, a “shari'a”. Minha opinião sobre se as diferentes interpretações islâmicas são boas ou não, aceitáveis ou não, justas ou não é irrelevante para o que escrevi. Minha intenção ali era outra: intencionava apenas responder a algumas coisas que havia lido e ouvido antes – coisas que julgo, vindas de quem vieram, intelectualmente desonestas (tendo sido dito/escrito por quem foi).

Posso discordar de determinadas ideias, mas isso não pode fazer com que feche os olhos à injustiça de acusações falsas. Discordar de alguém ou de algo não faz com que eu automaticamente me torne inimigo daquele/daquilo, e vice-versa. Alguém não se torna meu inimigo simplesmente por não crer/praticar no/o mesmo que eu. E mesmo que fosse meu inimigo, isso não tornaria justo que eu aceitasse que acusações falsas fossem feitas ao seu respeito.

A comparação acima pode parecer exagerada, mas, em minha percepção de alguns dos comentários que me enviaram, parece que alguns pensam que estou defendendo “o inimigo”!… Minha pergunta a esses leitores é: por que o Islã ou os muçulmanos seriam meus inimigos? Como já escrevi inúmeras vezes, convivi e convivo com muitos muçulmanos. Conviver com pessoas diferentes de você pode fazer com que se aprenda muito sobre os limites dessas diferenças!… E isso, a propósito, vale quanto a todos os aspectos da vida social, e não só religião.

Em nenhum ponto do que publiquei aqui justifiquei a imposição duma lei religiosa àqueles que não a desejassem. Muito pelo contrário. Expliquei que havia uma diversidade de interpretações do Direito Islâmico, e o fiz justamente para me opor à visão dum Islã uniforme – que é defendido tanto por islamitas fanáticos quanto pela retórica dos meios de comunicação “ocidentais”.

A propósito, há uma enorme diferença conceitual entre ser “muçulmano” e ser “islamita” (ou “islamista”). O termo “muçulmano” refere-se a um adepto do Islã. O termo “islamita” (ou “islamista”), por sua vez, refere-se a um adepto duma ideologia política, que politiza a religião muçulmana – aquilo que, em minha vida acadêmica, chamo de Islã Político. Essa ideologia, per se, é uma construção recente. Se quiser saber um pouco mais, pode ler algo que já escrevi a respeito AQUI.

Quanto à acusação de que eu seja um “ignorante manipulado pela esquerda”, feita por uma leitora, cometerei a indelicadeza de responder de forma arrogante: [Na verdade, não entendo por que usaria o adjetivo “esquerda” aqui!] Quantas vezes você já leu o Corão em língua árabe? Quantos livros teológicos islâmicos você já leu? Quantos amigos muçulmanos você tem? Em quantos países com maioria muçulmana você já morou ou já esteve?… Talvez eu não seja tão “ignorante” e “manipulado” quanto você pensa!!… Geralmente, prefiro não escrever acerca de temas sobre os quais não tenha um mínimo de informação!

Há algum tempo, tenho me preocupado com a forma como meus irmãos e irmãs muçulmanos têm sido retratados pelos meios de comunicação, pelos pronunciamentos de personagens do mundo político e, principalmente, pelo discurso religioso de outros grupos – especialmente cristãos. Como um humano e um cristão, me calar enquanto essas irmãs e esses irmãos têm sua fé injustamente retratada como sinônimo de violência e terror é trair à minha própria fé. Continuarei a criticar o que deve ser criticado, mas não participarei do festival de inverdades e discriminação.

Como um cristão, renuncio à islamofobia, doe a quem doer!

+Gibson

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Uma brevíssima explicação acerca da “shari'a”



Gibson da Costa

Fico sempre muito irritado quando ouço ou leio alguns comentários acerca da chamada “shari'a”. A maioria das pessoas, seguindo a retórica dos agentes da imprensa, refere-se à “lei islâmica” como se ela fosse uma “entidade” única e/ou como se fosse uma grande aberração.

…Eles não poderiam estar mais errados!

O Islã, como o Judaísmo e o Cristianismo, tem um código legal religioso. Enquanto o código legal judaico ortodoxo é chamado de “halakhah”, e o cristão é chamado de “direito canônico” (nas tradições católicas) ou “ordem eclesiástica / ordem da Igreja” (em muitas tradições protestantes), o código religioso da Ummah (a comunidade de fiéis muçulmanos) é chamado de “shari'a” (o Direito Islâmico). Nenhum deles, contudo, é estático ou uniforme. Como ocorre com as códigos civis, há espaço para muita diversidade interpretativa no que concerne a esses códigos.

O que importa, aqui, é que não há nada de absolutamente único ou estranho com o fato de haver um código legal religioso no Islã – com base no qual decisões são tomadas sobre a vida em comunidade, a aceitação ou exclusão de “(in)fiéis”, o status de certas pessoas, a aceitação ou não de certas crenças ou comportamentos etc. Isso pode não condizer muito com a mentalidade moderna ocidental, mas está presente em todas as comunidades de fé, em maior ou menor grau. Se você é parte de alguma comunidade de fé (igreja, centro, templo etc) que não possui um código legal explícito, se ela possui o status de Pessoa Jurídica, terá pelo menos um Estatuto Social (que mesmo sendo um documento civil, expõe expectativas que se baseiam nas perspectivas teológicas/religiosas daquela comunidade)!

Uma diferença que influencia na percepção que muitos cristãos ocidentais, especialmente não-católicos, têm da shari'a é o simples fato de o Cristianismo ocidental, de forma geral, enfatizar a “crença correta”, enquanto o Islã – assim como o Judaísmo –, de forma geral, enfatiza as “ações corretas”, o “comportamento correto” do fiel!

É importante tentar entender o próprio sentido do termo. “Shari'a”, em seu sentido não religioso, refere-se a um caminho que leva a um poço de água. Para as populações do deserto, um poço de água era/é a diferença entre a vida e a morte. Assim, aplicada à religião muçulmana, a “shari'a” seria um caminho que leva à vida – caminho esse divinamente revelado no texto sagrado (o Corão/Alcorão) e nas tradições orais atribuídas à Muhammad (que os muçulmanos acreditam ter sido Profeta). É nesse contexto que ela é a “Lei de Deus” – não muito diferente das ideias de “Lei de Deus” no Judaísmo ou no Cristianismo.

O Direito Islâmico não se baseia exclusivamente no Corão – como também ocorre com o Judaísmo/Cristianismo em relação à Bíblia. Isto é, em sentido amplo (no que concerne à teoria e à prática), há uma distinção entre a Lei de Deus (shari'a) – baseada naquilo que os muçulmanos creem ser revelações divinas – e a atividade humana de interpretar essa lei – chamada de “fiqh”. O Direito Islâmico é a combinação desses. De acordo com o fundador do Direito Islâmico, Muhammad ibn Idris al-Shafi'i (séc. VIII-IX d.C.), haveria quatro bases fundamentais para o Direito Islâmico: o Corão; a sunna de Muhammad; o consenso; e a analogia. Além dessas bases, sobre as quais concordam todas as escolas jurídicas islâmicas (madh'habs), há outras a depender da escola (madh'hab) em questão.

O termo “madh'hab” que citei acima, refere-se à cada uma das escolas jurídicas do Direito Islâmico. Essas escolas são tradições jurídicas que guiam a interpretação que um indivíduo ou grupo aceita em questões legais no Islã. Todo muçulmano adere a uma madh'hab específica, independentemente do ramo islâmico do qual seja adepto.

No Islã sunita há, hoje, quatro madh'habs principais: a Hanafi; a Maliki; a Shafi'i (cujo nome vem de Muhammad ibn Idris al-Shafi'i, que citei acima); e a Hanbali (a escola que originou o ramo Salafi, que, por sua vez, influenciou a maioria dos movimentos jihadistas conhecidos – como a Irmandade Muçulmana, o Taliban, a al-Qa'ida, e o chamado Estado Islâmico). Todas elas possuem algumas subdivisões. Ademais, historicamente, possuem adeptos em regiões específicas do mundo – a depender de como o Islã se propagou por aquela região. Há muitas outras madh'habs, mas essas são seguidas por um número muito pequeno de adeptos que se encontram em regiões geográficas muito limitadas.

No Islã xiita, por sua vez, há um número ainda maior de madh'habs, mas as duas principais delas – ou seja, aquelas seguidas por um maior número de adeptos – são a Jaf'ari e a Batiniyyah, ambas com suas subdivisões.

Ou seja, se formos intelectualmente íntegros, nos recusaremos a comprar a retórica ignorante, islamofóbica, e nem um pouco inocente dos que atrelam a noção de “shari'a” ou “lei islâmica” ao terrorismo ou assassínio de “jihadistas radicais” – o próprio termo “jihadista” deve ser utilizado com cuidado, já que “jihad” não significa necessariamente “guerra física”; e ser um “jihadi” nem sempre se refere a fazer guerra física (o termo pode ser usado como uma metáfora duma “batalha espiritual” – noção muito comum a alguns cristãos hoje em dia, especialmente nas tradições pentecostais ou carismáticas). É bom lembrar, ademais, que no Islã não existe a expressão “guerra santa” - essa expressão é uma invenção “cristã”!

+Gibson

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Deus e nossas compreensões a seu respeito


[…] Na vida, na morte, na vida além da morte, Deus está conosco.
Não estamos sozinhos. Graças a Deus.”


Recentemente, fui convidado a participar dum debate promovido por uma emissora de rádio acerca daquilo que chamaram de “fundamentalismo” religioso. Ao aceitar, já imaginava o possível caminho seguido pelo facilitador do debate, uma vez já havia sido entrevistado por ele antes. Assim mesmo, resolvi aceitar.

É engraçado como, em alguns pontos, alguns que se declaram como “ateus” se assemelham a alguns daqueles que se declaram como “crentes bíblicos”. A visão de Cristianismo que defendem ou recusam é exclusivista e engessada – ou seja, para que seus argumentos façam sentido, têm de reprovar e negar todas as outras possíveis expressões da fé cristã, mesmo aquelas com uma longa história.

Tratamos sobre Deus e Jesus, obviamente. Não tenho muita certeza da razão pela qual um cristão unitarista, como eu, seria convidado a um diálogo se os demais participantes, incluindo o próprio facilitador, excluem da identidade cristã aqueles que não abraçam uma visão teontológica (i.e., sobre Deus) e cristológica (i.e., sobre Jesus Cristo) ortodoxa. Para meus companheiros de debate, só seria possível “ser cristão” se você entende Deus como uma entidade pessoal que habita algum lugar no espaço (o “Céu”). E, para ser cristão, eu deveria crer em Jesus como “Deus em carne, que morreu” por mim!

Esse tipo de perspectiva, devo enfatizar, esperaria da maioria dos cristãos – afinal de contas, a maioria dos cristãos se declara “trinitarista”. Mas ela também foi defendida por um “cientista” que se declarou como “ateu”!… Lá estavam eles, talvez sem perceber, coparticipando – no mesmo lado – dum antigo e contínuo conflito epistemológico.

Expliquei aos meus colegas o sentido delimitado que atribuo ao termo “fundamentalismo”. Expliquei que o termo, para mim, não deveria ser utilizado da forma pouco clara e generalizada como o é pela maioria das pessoas que o utilizam. Expliquei que, apesar de eu ser um opositor do “fundamentalismo” (enquanto tradição teológica cristã), não utilizo o termo com um sentido pejorativo. Ser “fundamentalista” não é ser “intolerante” em si; mas, sim, as bases ideológicas daquela tradição são exclusivistas – mas “exclusivismo” e “intolerância” não são necessariamente sinônimos! [O ambiente político é o que tem sinonimizado os termos.]

Sim, também irritei os demais – especialmente o facilitador e o declarado “ateu”. Disse-lhes que era uma incoerência que atacassem o “fundamentalismo” ao mesmo tempo em que utilizassem a base mais importante da tradição para criticar as minhas posições: a ideia de que só há uma forma válida de crer.

Foi, ademais, interessante como se referiam a mim. Os demais – com exceção do “cientista” – eram “pastores” e “padre”. Eu era o “teólogo”.

Essa distinção poderia parecer irrelevante aos leigos, mas sob ela se escondia um preconceito acerca de minha fé. Obviamente, enfatizei isso. Disse aos demais que fora convidado àquele debate como um “Ministro cristão” – o que eu sou e o que era reconhecido por escrito no convite que recebera. O uso que faziam do termo “teólogo”, que creio ser inapropriado para se referir a mim – já que minha formação ou minhas atividades pastorais ou teológicas não me tornam um “teólogo” per se –, reforçava sua crença exclusivista de que minha fé não era cristã, minha comunidade de fé não era cristã e eu, por isso, teria menos dignidade ministerial que os demais. Mais uma incoerência para um evento que se apresentara como um debate sobre os riscos do “fundamentalismo religioso”.

Como já tenho dito e escrito há muitos anos, tendo a ter um grande cuidado no uso que faço de certos termos. Penso, por exemplo, que dizer “Deus existe” seja menos que apropriado para falar sobre minha fé. A existência é uma qualidade atribuída a entidades materiais, físicas, objetivas/mensuráveis. Deus, em minha compreensão não é nenhuma delas. É por isso que não proclamo a “existência” de Deus – mas meus colegas de debate foram, aparentemente, incapazes de compreender isso!

Em vez de falar em “existência” de Deus, prefiro proclamar sua “realidade”. Utilizo, inclusive, o nome “Realidade” para me referir ao Divino. Recorrendo à minha herança judaica, gosto de usar “o Nome”, “o Eterno”, “a Realidade” para me referir a Deus.

Deus, para mim, é mais que uma entidade pessoal. Deus enquanto “pessoa” é apenas uma metáfora para que possamos começar a compreender o Mistério Eterno. Se Deus fosse uma “pessoa”, estaria limitado pelo tempo e pelo espaço, já que a qualidade de pessoa é finita e condicional. Então, claramente, a “personalidade” (a qualidade de pessoa) de Deus seria apenas uma metáfora para que pudéssemos humanizar nossa relação com o Divino – da mesma forma como fazemos com nosso uso do termo “Pai”.

Assim, não posso dizer que tenho esperança de encontrar Deus ao fim de minha vida temporal. Não poderia ter esperança disso porque, para mim, Deus não é uma pessoa como você e eu. Deus não está num lugar específico do cosmo; o cosmo é que está em Deus – incluindo você e eu (Atos 17:28). Minha esperança não se centra num destino final; centra-se, antes, num encontro na jornada: ou seja, minha esperança é encontrar Deus no processo de viver minha existência. Assim, Deus, de fato, está comigo – porque O encontro no dia a dia.

Isso, contudo, é minha compreensão presente de Deus. Minha compreensão e todas as demais compreensões da Divindade não são o mesmo que Deus – se o fossem, seríamos todos idólatras, ao menos para a tradição cristã (já que estaríamos idolatrando nossas próprias compreensões). Deus é Deus. E Deus, que é Deus, é Eterno – e minha mente não consegue compreender plenamente a Eternidade, já que estou condicionado pelo tempo e pelo espaço.

E é exatamente por isso que me basta declarar que confio em Deus.

+Gibson

sábado, 17 de outubro de 2015

Minicurso “O Fim Está Chegando: Dois Milênios de Mitos Escatológicos” – respondendo às provocações que encerraram o minicurso

Esta semana, facilitei um minicurso, no IRWEC, chamado “O Fim Está Chegando: Dois Milênios de Mitos Escatológicos”. Como contamos com a presença de membros de outras instituições teológicas ou outras comunidades de fé, os debates foram acirrados e gratificantes. Para mim, como facilitador e autor daquele minicurso, aquela foi uma excelente oportunidade para discutir aquelas ideias com alunos, participantes e leitores, mesmo que com a aparente limitação de tempo (vinte horas distribuídas ao longo de cinco dias) para a abordagem dum tema tão importante à maioria dos cristãos.

Agradeço a todas e todos pelas provocações, questionamentos e ampla contribuição. Abaixo, responderei, como prometido, àquelas provocações às quais não pude responder, ontem, por falta de tempo.

Sou um cristão liberal. Minhas tradições e comunidades de fé me ensinaram a questionar, a duvidar, a buscar. Não a temer. O questionamento, em minha experiência, não destrói a fé. Muito pelo contrário. O questionamento a fortalece sobre bases sólidas, capazes de enfrentar a experiência da vida adulta.

Creio ser uma infantilização da fé – perdoem-me a linguagem – encará-la como algo que deva ser “defendida”, “protegida”, etc, quanto à sua relação com a cultura contemporânea. Esse tipo de asserção ao mesmo tempo personifica e coisifica a fé. Eu, pessoalmente, rejeito essa atitude. A fé, para mim, é a língua que utilizo e reconheço para articular minha compreensão do Mistério, para participar do diálogo espiritual do qual todos – mesmos os formalmente descrentes – participamos neste mundo. A fé, como as línguas que falamos, possui uma gramática própria, um vocabulário característico, uma melodia poética. Ademais, cada um de seus “falantes” possui seu próprio idioleto.

Obviamente, a comparação é metafórica, mas a metáfora se reveste de verdade para minha experiência humana.

Se alguns veem a “religião” – que chamo de “fé” – como uma “[re]ligação” com o Divino, eu a vejo como a língua através da qual articulamos a compreensão do e nossa relação com esse Divino. E essa língua independe duma ligação formal com uma “comunidade de fé” específica, por exemplo. Da mesma forma como ocorre com falantes de línguas minoritárias em países onde essas línguas não são oficiais ou não são faladas pela maioria.

Em minha relação com a Dimensão Misteriosa – que chamo de Deus –, “falo”, além da “língua” oficial ou majoritária da minha comunidade de fé, meu próprio idioleto espiritual, que pode ser estranho a outros membros daquela comunidade. E creio que isso ocorra com todos nós.

E já que tratamos de Teologia Histórica, é importante enfatizar que aquela atitude – o da “defesa da fé”, nos termos que foram levantados por um dos participantes – tem uma origem histórica específica no pensamento teológico ocidental: a Reforma Protestante. É a partir das diferenças que emergem na Reforma entre os variados grupos “protestantes”, e entre esses e os católicos romanos, que a “fé” passa a ser sinônimo, quase que exclusivo, de “crença”. Ela deixa de ser uma ação divina na alma humana e passa a ser uma ação intelectual do próprio homem. Ter fé, a partir de então, é acreditar na doutrina certa – e, obviamente, o que é “certo” (ortodoxo) para alguns, será “errado” (herético) para outros. Com isso, obviamente, não estou querendo dizer que as noções de “ortodoxia” e “heresia” só passaram a existir a partir da Reforma; o que estou afirmando é que a noção de “fé”, no Cristianismo ocidental, foi reduzida e determinada por aquelas duas outras noções!… É por isso que ouço, por exemplo, pessoas me chamando de “descrente”, “ateu” etc, por não compartilhar de suas compreensões. Como não acredito no que elas acreditam, então – para essas pessoas –, não tenho fé alguma, estou longe de Deus! [Não foi exatamente isso que foi dito pelo participante que me questionou?!]

[O questionamento, a propósito, não me ofendeu por inúmeras razões. A primeira delas é o simples fato de eu acreditar plenamente que o questionamento seja essencial ao aprendizado e que esse só é possível num ambiente de liberdade intelectual – como quero acreditar que tenha sido o nosso ao longo do minicurso. A segunda é o também simples fato de eu saber exatamente a origem daquela dúvida – conhecendo o background do questionador, ficou fácil entender a raison d'être de sua questão, e que eu tinha de respondê-la a partir de sua perspectiva (isto é, colocar-me em seu lugar). Então, por mais que ele pudesse ter sido menos agressivo em suas colocações, entendo suas razões, e por isso não me sinto ofendido!]

O grande problema em se definir a fé como “assensus” – isto é, como “crença” – é o de lidar com o tipo de conhecimento que nos estão disponíveis hoje em dia. Um exemplo: um cristão, do século XXI, lê os relatos da Criação no Gênesis – sim, porque não há apenas um, há dois relatos distintos da Criação (a mais antiga começa em Gênesis 2:4 e se estende até o fim do capítulo 3; a segunda narrativa aparece entre Gênesis 1:1 – 2:3) – e percebe que há um grande “conflito” entre aqueles relatos e o que sabemos sobre a origem de nosso Universo e da vida aqui. O que faz?… Bem, se ele acredita que a Bíblia seja um escrito divino em sua origem, no qual não há erros, sua única opção – de acordo com os que ensinam essa perspectiva – será rejeitar o que a ciência ensina. Ou, como alternativa, poderá abandonar sua “fé”. Mas, novamente, esse é um caso extremo em dois aspectos: sua compreensão do conceito de “fé” é exclusivista; assim como também o é sua compreensão do conceito de “ciência”.

O mais interessante é que isso é defendido não apenas por pessoas religiosas. Muitos “cientistas” também abraçam uma visão exclusivista tanto da fé quanto da ciência! [Correndo o risco de fazer certas asserções equivocadas acerca da fé religiosa como as feitas por Christopher Hitchens num famoso livro seu, “God is not great”.]

Pessoalmente, não penso que haja contradição entre fé e ciência, pela simples razão de as duas lidarem com distintas dimensões da realidade. Deus, espírito, etc, são conceitos que utilizamos para lidar com a dimensão Misteriosa de nossa realidade. Os terremotos, a evolução, os tsunamis, as doenças, etc, são todos temas que dizem respeito à dimensão objetiva de nossa realidade. E há aqueles temas que se dividem entre os dois: o nosso tema de estudo no minicurso a Escatologia – é um exemplo disso.

Preocupações escatológicas, a propósito, não se restringem apenas a tradições religiosas judaicas, cristãs e islâmicas, já que também adentraram, até certo ponto, as filosofias políticas que emergiram entre judeus, cristãos e muçulmanos (Marx e Engels sendo, para alguns, um exemplo disso no Ocidente judaico-cristão; Sayyid Qutb, um exemplo dentre os pensadores muçulmanos); e, se entendermos essa preocupação escatológica de forma mais ampla, ela também se faz presente, de alguma forma, na narrativa cosmológica da ciência contemporânea (por exemplo, na ideia de que vivemos num Universo em evolução, um Universo com uma seta quântica de tempo, cuja direção lhe é transmitida pela assimetria temporal advinda da segunda lei da termodinâmica).

Quanto às questões específicas referentes às Escatologias judaicas e islâmicas, elas foram discutidas em nosso segundo encontro, e estão no material que disponibilizei para vocês. Assim, esclarecerei apenas o ponto sobre o chamado “Mahdismo” islâmico do século XIX – o termo “Messianismo” não é apropriado para nos referirmos a esse movimento no Islã. Um “mahdi” seria alguém divinamente escolhido para livrar uma comunidade do perigo. No século XIX, em decorrência da experiência do imperialismo europeu, muitos “mahdis” surgiram nos países de maioria muçulmana, especialmente na África. Esse movimento, obviamente, criou uma tensão com as formas mais “ortodoxas” de Islã. E isso mantém certas semelhanças com o que ocorreu no próprio Cristianismo, com seus movimentos “proféticos” (o Profetismo)… Mas já discutimos isso, logo não necessito tratar disso aqui novamente.

Para concluir, apesar de ser limitado tratar do desenvolvimento de compreensões escatológicas sem se levar em consideração o contexto sociocultural do lugar onde emergiram, é ainda muito mais limitado pensar que crenças religiosas sejam determinadas pelos contextos políticos ou econômicos nas quais surgiram. Essas crenças – parte da dimensão conceitual envolvem elementos daquela dimensão misteriosa à qual fiz menção, que não se justificariam apenas pela política ou economia. A abordagem interpretativa que abraço envolve as três “dimensões”: a objetiva, a misteriosa e a conceitual – ou seja, do encontro de nossa experiência com a dimensão objetiva com a dimensão misteriosa, participamos na construção da dimensão conceitual (que consiste em muito mais que apenas crença). Assim, a fé (a dimensão conceitual), em minha compreensão, é um processo de relações entre nossa experiência com o mundo, com outras pessoas, conosco mesmos, e desses com o “Mistério”; dessas relações emerge nossa compreensão – nossos conceitos.

Bem, é isso!… Quaisquer comentários, críticas ou dúvidas, é só me escrever.

Grande abraço a todas e todos!

+Gibson

domingo, 27 de setembro de 2015

Religião e Política: Mais uma vez, a incoerência do tal "Estatuto da Família"


Na direção contrária de líderes eclesiásticos protestantes de séculos e décadas passadas – que labutaram pela separação entre Igreja e Estado, pelo fim da escravidão, pelo tratamento digno dos mais pobres, pela igualdade jurídica das mulheres, pela igualdade plena de direitos de grupos sociais minoritários, pela proteção ao meio ambiente, pela construção da paz, etc etc etc –, muitos dos líderes eclesiásticos protestantes ou evangélicos (os dois adjetivos não são necessariamente sinônimos, já que o Evangelicalismo é apenas um movimento dentro do Protestantismo) atuantes no Poder Legislativo brasileiro preferem o caminho da segregação de direitos, por meio da imposição duma visão teológica incoerente. É um grande testemunho contrário àqueles exemplos de mulheres e homens do presente e dum passado nem tão longe assim. Uma vergonha!

Isso me faz pensar em meus irmãos protestantes ou evangélicos no Paquistão, que sofrem uma assombrosa perseguição, e cujos líderes pregam, em retorno, a compaixão, o perdão e o serviço àqueles que os perseguem. No Brasil, um país de relativa liberdade religiosa, os “vingadores de Cristo” (como os identificou um daqueles pregadores de TV) preferem retirar direitos de cidadãos em nome duma obsessão com a dita comunidade LGBT – sim, porque, como já escrevi antes, a raison d'être do “Estatuto da Família” é a guerra antigay, baseada numa moral sexual particular, levada adiante pelas bancadas religiosas no Legislativo brasileiro. Uma vergonha!

+Gibson

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Deus, Cristianismo, Inferno, Homossexualidade: Uma breve resposta a múltiplas provocações das últimas semanas



Infelizmente, por razões pessoais, tenho tido pouco tempo para responder à maioria das mensagens das últimas semanas. Por essa razão, responderei aqui, de forma breve e conjunta, a algumas das “provocações” de meus correspondentes. Assim que tiver tempo, oferecerei uma resta mais ampla. Perdoem-me pela brevidade.





Deus e Cristianismo



Como um cristão, encontro minha “janela” ou meu “caminho” para Deus na tradição cristã (na comunidade da Igreja, nas Escrituras, na Liturgia, na narrativa cristã, etc). Mas o Cristianismo é a resposta humana à Realidade que chamamos “Deus”, e não o contrário. Eu sou cristão, mas isso não significa que Deus seja cristão!





O Inferno



Não acredito na existência dum lugar objetivo para onde espíritos sejam enviados como condenação por seus pecados. O “inferno”, em minha visão, é uma metáfora para um estado espiritual/mental de alguém. Não se trata dum espaço geográfico no Universo. A crença na existência dum “inferno” físico contradiz minha compreensão acerca do Divino e da natureza do Universo.





Igreja e Homossexualidade



Tenho uma filosofia muito simples para resolver essa questão de compatibilidade: qualquer comunidade de fé é uma sociedade humana, com suas tradições e regras. Se você quiser fazer parte dessa sociedade, terá de se submeter às suas regras. Caso contrário, pode não ser membro de qualquer uma, pode buscar uma outra sociedade ou, quem sabe?, fundar sua própria.



Se uma determinada comunidade de fé ensina que isso ou aquilo é pecaminoso e que a punição pela "desobediência" às regras seja sua exclusão, você tem a escolha de se submeter às regras da mesma ou não – mas não terá poder para escolher as consequências por suas escolhas, no que tange à comunidade em si. Lembre-se que a filiação religiosa é uma associação voluntária, ou seja, ser membro duma comunidade de fé é voluntariamente se submeter às suas regras. Você não pode esperar que uma comunidade mude em função de você se isso contraria à compreensão que ela tem de si mesma. Mas você, por outro lado, pode encontrar uma outra comunidade!... Fazer esse tipo de escolha pode ser complicado e doloroso, mas é uma escolha justa para com os demais membros duma comunidade que não o aceite e íntegra consigo mesmo!





Ainda sobre Homossexualidade



Para mim, as pessoas são “humanas” (e tudo o que isso implica no contexto teológico e sociocultural) antes de serem qualquer outra coisa. As identidades que ou abraçamos ou nos são impostas – sejam as identidades nacionais, religiosas, políticas, ou emotivo-sexuais – são apenas partes dum todo muito maior. Nós somos muito mais do que essas partes separadas – e mais do que sua soma. Assim, tratar de si próprio ou de outra pessoa como se sua orientação emotivo-sexual fosse sua “essência” é negar a si próprio ou a outrem sua humanidade – que, na perspectiva teológica que abraço equivaleria a negar nossa origem na “dança divina” da Criação.





+Gibson

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Fé ou preconceito?: uma resposta a Ana


Ó homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de você: praticar o que é justo, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o seu Deus.
(Miqueias 6:8)

Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo.
(Tiago 1:27)

[…] Tratai com benevolência os vossos pais e parentes, os órfãos, os necessitados, o vizinho próximo, o vizinho estranho, o companheiro de lado, o viajante e os vossos servos, porque Deus não estima arrogante e pretensioso algum.
(Alcorão 4:36)

Cara Ana,

É importante que você perceba que nunca escrevi que não há “verdade”. Muito pelo contrário. Se você ler cuidadosamente o que tenho publicado aqui mesmo, neste blogue, perceberá que apenas enfatizo uma diferença epistemológica entre “verdade” e “factualidade”. Nem toda “verdade” é factualmente/objetivamente verificável: assim, por exemplo, o amor é uma “verdade”, apesar de não ser uma “factualidade” (porque não pode ser mensurado em si). Esse ponto é importantíssimo quando discuto temas concernentes à eticidade. Tendo dito isso, deixe-me responder às suas provocações.

Não. Não acredito que todas as religiões sejam igualmente “verdadeiras” (lembre-se da distinção que faço entre “verdade” e “factualidade”). Há muitas semelhanças entre diferentes tradições de fé, mas há, também, incontáveis diferenças – que podem ser, dependendo das tradições teológicas em questão, irreconciliáveis. Assim, para mim, há certos conceitos/doutrinas e práticas religiosos que não posso aceitar como “verdadeiros” ou “certos”, pois violam princípios teológicos que moldam minha compreensão do sagrado e/ou da “realidade” factual. [Todos esses termos podem parecer apenas um “emaranhado de palavras” para que eu pareça “mais inteligente do que realmente” sou – suas palavras –, mas eu as utilizo para evitar a armadilha da falsa objetivação do que não pode ser mensurado. E o público ao qual destino estas páginas é capaz de compreender os usos que faço.]

Baseada apenas numa lista de links e em uma única postagem aqui, você escreve que devo ser “um muçulmano disfarçado de cristão”. Essa é uma acusação que, no mínimo, segue em direção oposta ao que geralmente sou acusado. A maioria de meus denunciadores me acusam de ser um “ateu” ou “anticristo” disfarçado de cristão! [É bem verdade que já fui acusado de ser um “católico disfarçado de protestante”; “judeu disfarçado de cristão”; “comunista disfarçado de liberal”; etc, etc, etc. Mas, com sua acusação, atinjo um nível recorde de “disfarces”!]

Para esclarecer sua dúvida – ou seria “para desmentir sua certeza”?! –, sou um cristão liberal, com background judaico. Com tal perfil religioso, tenho muito em comum com alguns muçulmanos – com nossa preocupação em viver nossa fé, e não apenas proclamá-la com nossas bocas. Tenho muitos amigos muçulmanos. Já vivi num país de maioria muçulmana. E, em decorrência de minha formação cultural/acadêmica e minha experiência de vida, posso dizer que conheço o Islã razoavelmente bem. Por isso, sei distinguir o que é abraçado pela maioria do que é compreensão minoritária. Esse é um tipo de conhecimento, aliás, disponível a toda pessoa de boa vontade – só é necessário dar um passo para fora da bolha cultural na qual, muitas vezes, as pessoas se escondem e se separam do resto da humanidade. Posso ser fiel à minha própria fé religiosa e à minha própria visão de mundo sem ser desonesto quanto à fé e compreensão alheias – sem erroneamente atribuir-lhes certas compreensões, simplesmente para engrandecer minhas próprias.

Se há terroristas que se apresentam como muçulmanos – e que você, equivocadamente, vê como “representantes autorizados” do Islã –, também há terroristas, assassinos, ladrões, corruptos e corruptores que se apresenta(ra)m como cristãos ou judeus. E, nem por isso, você me escreve dizendo que todos os cristãos ou judeus são terroristas, assassinos, ladrões, corruptos, corruptores etc! Isso não lhe diz nada sobre sua própria visão de mundo? [...ou, ao menos, a visão de mundo que você exibiu em sua provocação?!…] A julgar pela forma como a maioria dos muçulmanos que conheci ou conheço se comportam e vivem suas vidas, tenho certeza que é sua visão de mundo que está equivocada.

Paz!
+Gibson

sábado, 5 de setembro de 2015

As Escrituras e a Declaração Universal dos Direitos Humanos já dizem o que acredito sobre aqueles(as) que buscam refúgio


Não escreverei mais nada sobre a situação de nossos irmãos e irmãs em busca de refúgio nas diferentes partes do mundo. Prefiro que as Escrituras e a Declaração Universal dos Direitos Humanos falem por mim:

"Se um estrangeiro vier habitar convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas esteja ele entre vós como um compatriota, e tu o amarás como a ti mesmo, porque fostes já estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, vosso Deus." (Levíticos 19:33-34)

"Quando o Filho do Homem voltar na sua glória e todos os anjos com ele, sentar-se-á no seu trono glorioso. Todas as nações se reunirão diante dele e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estão à direita: - Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim. Perguntar-lhe-ão os justos: - Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos visitar? Responderá o Rei: - Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes." (Mateus 25:31-40)

"Jesus então contou: Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de ladrões, que o despojaram; e depois de o terem maltratado com muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o meio morto. Por acaso desceu pelo mesmo caminho um sacerdote, viu-o e passou adiante. Igualmente um levita, chegando àquele lugar, viu-o e passou também adiante. Mas um samaritano que viajava, chegando àquele lugar, viu-o e moveu-se de compaixão. Aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho; colocou-o sobre a sua própria montaria e levou-o a uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte, tirou dois denários e deu-os ao hospedeiro, dizendo-lhe: Trata dele e, quanto gastares a mais, na volta to pagarei. Qual destes três parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões? Respondeu o doutor: Aquele que usou de misericórdia para com ele. Então Jesus lhe disse: Vai, e faze tu o mesmo." (Lucas 10:30-37)

"Artigo 13
I) Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.
II) Todo o homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.

Artigo 14
I) Todo o homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.
II) Este direito não pode ser invocado em casos de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas." (Declaração Universal dos Direitos Humanos)

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Aos “conservadores” políticos e religiosos que insistem em bater sempre na mesma tecla quando me escrevem


Se você pensa que me preocupo com imigrantes, com pessoas mais pobres do que eu, que defendo os direitos civis, levo questões ambientais a sério, sou a favor do controle de armas, renuncio à violência, etc, simplesmente porque seja de determinada persuasão política é porque você não conhece minha fé... Então, se quer realmente apontar um culpado por minha visão de mundo, a culpa é, em grande parte, de minha tradição religiosa, que afirma que Jesus ensinou em suas palavras e ações que só se pode amar a Deus quando se ama ao próximo – e o amor tem de ser demonstrado no cuidado com os seres humanos e com o todo da Criação!

+Gibson