[NOTA:
Os termos e/ou trechos em grego e hebraico, ao longo do texto, são
apenas transliterações.]
Começo
com uma afirmação básica necessária: pouquíssimos estudiosos
sérios questionam a existência de Jesus como um personagem real da
história. São numerosas as fontes romanas, judaicas e cristãs
sobre Jesus. Elas, obviamente, afirmam opiniões diversas a seu
respeito, mas são aceitas como evidências suficientes de sua
historicidade.
Quando
Yeshua – o nome de Jesus em sua provável língua nativa, o
aramaico (apesar de nenhum dos evangelhos explicitarem a língua
falada por Jesus, pouquíssimas pessoas, além da elite dos escribas,
podiam, àquela época, falar, ler ou escrever o hebraico bíblico; e
os galileus falavam aramaico, não hebraico) – nasceu, seus
conterrâneos viviam sob a tirania de conquistadores estrangeiros e
sob o que entendiam como uma ameaça à sua identidade israelita
advinda da assimilação cultural (uma ameaça recorrente à ideia
duma identidade israelita ou judaica). A identidade israelita de seu
povo enraizava-se na terra e no “mito” duma aliança que tornara
aquela terra sua. Essa aliança mitológica era o escudo e a
resistência que aquele povo tinha contra as forças imperiais
romanas – uma fortaleza cultural que permaneceu de pé, mesmo
depois de todas as instituições políticas e militares de Israel
terem sido derrotadas.
A
mitológica aliança que ligava aquele povo à sua terra emergira da
compreensão que tinha das tradições israelitas. Essa compreensão
advinha não do texto escrito da Torá e dos Profetas em hebraico –
que pouquíssimos eram capazes de ler, de qualquer forma –, mas de
seu “targum” oral. Um “targum” era uma tradução oral do
texto das Escrituras que era memorizada e enriquecida por
comentários, e recitada pelo “targeman” da comunidade. Essa
recitação interpretativa das Escrituras contextualizava a tradição
espiritual israelita para as circunstâncias de seu tempo, fazendo um
amplo uso de leituras metafóricas. Dentre as muitas imagens
enfatizadas por essa tradição interpretativa estava aquela do
“Reino/Domínio de Deus” [basileia tou theou, no grego do
Novo Testamento], que sobrepujaria todas as outras formas de reino ou
domínio humano – uma forma de resistência poderosa para um povo
que vivia sob o domínio estrangeiro.
Foi
nesse contexto sociocultural que Miriam (Maria, em aramaico) e Yosef
(José, em aramaico) conceberam a Yeshua (Jesus).
O
texto grego de Mateus afirma:
“tou de iesou christou he gennesis houtos en mnesteutheises gar
tes metros autou marias to ioseph prin e sunelthein authos heurethe
en gastri echousa ek pneumatos hagiou.” [A origem de Jesus, o
ungido, foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a
José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida por ação do
Espírito Santo.] (Mateus 1:18)
O
mito que envolve a narrativa natalina pode obscurecer o sentido
histórico das palavras acima, extraídas do Evangelho de Mateus
(“...antes de viverem juntos, ela ficou grávida por ação do
Espírito Santo”). Em nossa cultura, afinal, a maioria de nós
foi condicionada a interpretar aquelas palavras com base nos dogmas
da Encarnação e da Trindade desenvolvidos posteriormente. Mas a
tradição presente nos diferentes Evangelhos testifica sobre a
recorrente acusação de que Jesus fora concebido de forma
supostamente ilícita. Em sua vila de origem, de acordo com o autor
do Evangelho de Marcos, ela era conhecido não como filho de José,
mas como “o filho de Maria” [ho huios marias] (Marcos 6:3) – o
que, se factual, seria uma evidência de seu status de ilegitimidade,
já que as noções de “encarnação” e “trindade” ainda não
haviam sido desenvolvidas. Mesmo longe de sua vila de origem, por
exemplo, quando já era um rabino conhecido, Jesus foi
ridicularizado, em Jerusalém, por haver nascido como fruto de
“porneias” [fornicação] (João 8:41). Os séculos de
dogmas acerca duma concepção e nascimento miraculosos obscureceriam
dois pontos importantes sobre a narrativa que temos sobre Jesus: 1)
Por que Jesus era insultado por supostamente ser filho ilegítimo?;
e, 2) Por que se desenvolveu a narrativa de que teria nascido duma
mãe virgem?
Aquela
pequena frase em Mateus 1:18, enfatizada acima, é uma explicação
suficiente para as acusações que marcariam a vida de Jesus de que
seu nascimento possuía uma origem irregular. Ao mesmo tempo, também
é suficiente para explicar a origem da lendária narrativa de que
sua origem era miraculosa. Os seguidores posteriores de Jesus usariam
a narrativa atribuída a Mateus como base para afirmar que Maria era
biologicamente virgem quando do nascimento de seu filho. E por causa
disso, em nossa própria época, os leitores teologicamente não
ortodoxos podem se sentir tentados a descartar o valor histórico do
Evangelho de Mateus. Mas, apesar de o texto daquele Evangelho e de
outros estarem repletos de elementos não factuais, ele não pode ser
responsabilizado pela leitura mítica que lhe foi imposta após sua
escrita.
Um
exemplo da compreensão mitológica posterior do texto encontra-se em
Mateus 1:23 – “...he parthenos en gastri exei kai
texetai huion...” [a solteira na barriga terá e dará à luz
filho] –, quando afirma que uma mulher solteira [parthenos]
conceberia um filho. Na tradução daquele texto grego à língua
latina, no século II, “parhenos” tornou-se “virgo”, e essa
tradução posteriormente alimentou a ideia de que Maria teria sido
biologicamente virgem quando concebeu e deu à luz a seu filho Jesus.
O problema com esse sentido, contudo, é que os termos “parthenos”
e “almah” [“mulher jovem” – o termo hebraico que aparece na
referência ao texto de Isaías 7:14] não significavam “virgem”
como esse termo é utilizado na tradição cristã – na verdade,
nem mesmo “virgo” significava isso exclusivamente; a expressão
utilizada pelos romanos para “virgem”, no sentido relativo a
“castidade”, era “virgo intacta” (por que não foi
utilizado na tradução latina da Bíblia?!).
Uma
razão que pode ser apontada para o uso de “parthenos” para
referir-se a Maria é o fato de o(s) autor(es) de Mateus querer(em)
fazer uma ligação entre Jesus e antigas profecias israelitas, para
substanciar a afirmação de que ele seria o Messias esperado. Assim,
seu passado é ligado ao passado de Israel. Note que sua mãe se
chamava Maria [Miriam, em aramaico], e Maria [ou Miriam] era também
o nome da irmã de Moisés, que salvou sua identidade israelita e,
consequentemente, seu chamado profético (Êxodo 2:1-10), e que
também foi chamada de “profetisa” (Êxodo 15:20). Essa Maria,
irmã de Moisés, era descrita também como uma “almah”
[parthenos, na tradução grega]. Assim, a mãe de Jesus possuía
dois traços em comum com a irmã do libertador do povo de Israel,
Moisés: o nome e a condição. Se a mais antiga Maria tivera a
missão de assegurar que seu irmão manteria sua identidade como um
israelita e, consequentemente, se tornaria o libertador de seu povo –
sendo ela mesma uma profetisa –, a mãe de Jesus tinha a missão de
trazer o Messias (o Cristo) ao mundo... Pequenos detalhes na
narrativa que se tornaram essenciais para a forma como a maioria dos
cristãos entenderia o Natal, mas aos quais poucos estão atentos!
Obviamente,
a forma como a ortodoxia cristã lidou com isso tem muito mais a ver
com as influências das ideias greco-romanas no pensamento da Igreja
que emergia – pense, por exemplo, nos dogmas da Encarnação e da
Trindade – do que propriamente com o que os textos originais das
Escrituras ou a tradição judaica tinham a dizer. Assim, ao longo
dos séculos, os cristãos não teriam a mínima necessidade de
conciliar algumas afirmações feitas sobre Jesus, nos Evangelhos,
com o todo da tradição judaica da qual ele era parte. E a ênfase
no sobrenatural, no que tange à história de Jesus de Nazaré, pode
ter contribuído para que a tradição cristã perdesse contato tanto
com a cultura religiosa da qual emergiu quanto com a poderosa
mensagem humana presente nos relatos, mesmo que míticos, sobre sua
vida.
A
questão sobre a concepção de Jesus – quem era seu pai, afinal de
contas? – encontra três explicações diferentes no Novo
Testamento (e essas podem se entrelaçar, nas mesmas fontes, com
explicações conflitantes):
-
1) Jesus teria sido concebido através da intervenção do “espírito
santo” (ainda não necessariamente entendido como uma “pessoa”),
por meio dum mecanismo desconhecido. Sua mãe, assim, não tivera
relações sexuais com um homem: Lucas 1:34-35 e Mateus 1:18-25.
-
2) Jesus era, de fato, filho de José: João 1:46; 6:42; Lucas 4:22;
Mateus 1:1-17 e Lucas 3:23-38 (genealogias que só poderiam ter sido
desenvolvidas com base nessa suposição) – os ajustes em Mateus
1:16 e Lucas 3:23 parecem ser posteriores. A identidade de Jesus
como “filho de Davi” – Mateus 1:1; 9:27; 12:23; 15:22;
20:30-31; 21:9, 15; Marcos 10:47-48; Lucas 18:38-39; Romanos 1:3; 2
Timóteo 2:8; Apocalipse 5:5, e 22:16 – implicitamente invoca essa
noção, já que apenas José poderia mediar essa linhagem (Mateus
1:20; Lucas 1:27, 32, e 2:4).
-
3) Jesus foi acusado, por alguns de seus adversários, de ser fruto
de “fornicação” [porneia, no texto grego] – João
8:41 –, e tal acusação é frequentemente vista como a base para
a omissão de José na identificação de Jesus em Marcos 6:3, como
já apontado anteriormente.
Ou
seja, os próprios livros do chamado Novo Testamento – quando
compreendemos sua historicidade (a forma como foram compostos e,
posteriormente, ajustados para conformarem-se à ortodoxia
desenvolvida posteriormente) – oferecem uma multiplicidade de
pistas sobre o personagem histórico cuja memória nós cristãos,
das mais variadas expressões, honramos no Natal. Essa multiplicidade
contraditória, dentre tantas outras razões, resulta do simples fato
de esses escritos não terem sido compostos como registros históricos
como entendemos “História” e/ou “históricos” em nossos
dias. As finalidades que tinham e os públicos aos quais se dirigiam
não exigiam a noção de “factualidade”.
Mas,
além daqueles escritos, podemos também acessar as pistas deixadas
por outros textos importantes para entender a cultura religiosa na
qual Jesus cresceu. Aquela pequena e simples frase em Mateus 1:18,
assim como as expressões utilizadas nos trechos citados de Marcos e
João (“filho de Maria” e “fornicação”) como referência a
Jesus, pode(m) ser explicada(s) pela tradição talmúdica israelita.
Por “talmúdica”, a propósito, quero me referir ao Talmud, um
registro de discussões rabínicas acerca da Lei, exegese, costumes,
história e tradições judaicas. O Talmud é composto pela Mishnah e
pela Guemara e, apesar de os registros escritos mais antigos serem
posteriores ao registro dos Evangelhos, aquela tradição da Torá
Oral do judaísmo rabínico já existia antes de Jesus – estando
presente em trechos dos Evangelhos.
Se
voltarmos à tradição de José como originário duma cidade
diferente da da jovem Maria (Lucas 2:4-5) – há, hoje, o
conhecimento da existência prévia duma Belém na própria Galileia,
próximo a Nazaré, mas evitarei entrar nessa questão aqui –,
poderemos compreender um pouco da desconfiança sobre a paternidade
de Jesus levantada por seus adversários.
Independentemente
de quem tenha sido o pai de Jesus, as condições sob as quais foi
concebido, de acordo com o(s) autor(es) do Evangelho de Mateus, o
tornariam um “mamzer”, alguém gerado através de relacionamentos
proibidos (e seus descendentes até a décima geração) pela lei
judaica. A não ser que Maria pudesse apresentar testemunhas de que o
pai de seu filho era um parceiro lícito, de acordo com a lei, se
consideraria que o pai de sua criança era um “mamzer”, um filho
de “mamzer” ou outro tipo de pessoa proibida, o que
automaticamente também tornaria Jesus um “mamzer” (Mishnah
Ketubot 1:8-9). E isso ocorreria tanto se José fosse o pai – já
que, de acordo com o(s) autor(es) de Lucas, ele vinha de outra região
e, assim, não poderia haver uma testemunha confiável de sua
licitude como não “mamzer” para a comunidade de Maria –,
quanto, e especialmente, se o “Espírito Santo” fosse o pai de
Jesus – já que não poderia haver uma testemunha da licitude dessa
paternidade!
Encontrar
uma tradução apropriada para o termo “mamzer”, em português, é
difícil. Algumas vezes, utiliza-se “ilícito” ou “ilegítimo(a)”,
mas deve-se ter em mente que o termo hebraico não se refere a uma
criança nascida fora do casamento – refere-se ao fruto duma
relação sexual com a pessoa errada. As relações sexuais entre
pessoas não casadas, a propósito, eram toleradas, e não afetavam o
status da criança – só afetariam se um dos parceiros fosse
“ilícito”. Muitas traduções, em português, da primeira
referência ao “mamzerut” (a condição de um[a] “mamzer”) na
lei judaica, traduzem “mamzer” como “bastardo”:
Não entrará bastardo na congregação do Eterno, nem ainda a décima
geração dele não entrará na congregação do Eterno.
[Deuteronômio 23:3 – da tradução da Editora Sêfer]
O
Talmud esclarece que essa proibição de entrada na congregação
significa a proibição de casamento com um[a] israelita. Os filhos
duma união sexual entre um “mamzer” e uma mulher israelita
estariam, igualmente, proibidos de se unirem a mulheres israelitas.
No caso específico de Jesus, a ausência de provas de que era filho
de um pai lícito – fosse seu pai divino ou um forasteiro na
Galileia sem referências – o tornava um “mamzer”. O que
significaria que, além de ser proibido de unir-se licitamente a uma
mulher israelita, estava condenado a não ter voz na comunidade.
[Você poderia me questionar sobre que garantias teríamos que José,
por exemplo, não teria testemunhas reconhecidas de sua licitude para
unir-se a Maria. Realmente não temos. Mas as evidências nos textos
apontam para o fato de que Jesus foi acusado de “mamzerut” por
seus adversários – e isso, se considerarmos o testemunho dos
textos evangélicos, seria uma evidência de que haveria rumores a
seu respeito!]
Olhar
para os relatos da vida e dos ensinamentos de Jesus considerando as
diferentes possibilidades permitidas pelos textos sagrados, cotejados
com outras fontes do mesmo contexto sociocultural, pode parecer
simples especulação para aqueles que abraçam o mito natalino como
um relato factual. Mas, para mim, abre outras portas para compreender
a tradição cristã. Ajuda-me, por exemplo, a compreender melhor a
ênfase na visão de Deus como “paizinho” com o qual se pode
manter relação pessoal – se Jesus foi um mamzer, e sofreu
discriminação por isso, seu suposto uso do termo “Abba” para
referir-se a Deus teria um impacto muito maior; suas fábulas sobre
crianças teriam um peso muito mais profundo.
Assim,
em minha experiência espiritual, humanizar Jesus, por meio da
análise de possibilidades históricas, não equivale a diminuir sua
importância. Muito pelo contrário. Significa alargar o sentido da
tradição. Jesus deixa de ser apenas um mito etéreo – o Cristo
construído pela ortodoxia –, e se torna o homem real, que iniciou
sua vida como “refugiado”, viveu como um “excluído” e, por
isso mesmo, sabia do que estava falando!
+Gibson