A
Paixão comercializada
Como
muitos sabem, sou um cinéfilo e, como tal, tendo a não apenas
assistir a muitos filmes assim como também a me envolver em
conversas sobre eles com meus amigos. Hoje, lembrei-me das acirradas
discussões que tivemos, em 2004, acerca do filme A Paixão de
Cristo [The Passion of the Christ], de Mel Gibson. Lembro-me
que quando o filme foi lançado nos Estados Unidos, centenas e
centenas de igrejas cristãs das mais diferentes tradições
organizavam idas coletivas ao cinema para assisti-lo. Para muitas
daquelas pessoas aquele parecia ser um exercício espiritual, uma
forma de experiência sacramental na qual se efetuava um encontro com
Cristo. Eu, contrariamente, senti-me majoritariamente ofendido tanto
pelo filme quanto pelo que percebi como uma comercialização
explícita da fé. [De certa forma, não tão diferente do que ocorre
hoje, no Brasil, com o filme Os Dez Mandamentos, de
Alexandre Avancini, e não tão diferente do que ocorre com a Paixão
de Cristo, de Nova Jerusalém, em Pernambuco.]
As
críticas que fiz em 2004, em conversas informais e no púlpito,
ainda são válidas. Quando a fé cede à força do consumismo,
corre-se o risco de abrir mão do que há de mais belo na tradição,
e de deixar de encontrar novos sentidos para o encontro com o Divino.
Transformar as narrativas das tradições sagradas em mercadoria que
possa ser vendida e comprada, num entretenimento fomentador duma
“religiosidade” imediatista, é baratear a experiência com o
Divino e, portanto, consigo mesmo – e para mim, como um unitarista,
tal tipo de experiência (com o Divino e/ou consigo mesmo) deve
envolver tanto as emoções quanto a razão.
Será,
então, que filmes, a seleção de astros e estrelas do cinema ou da
TV, e o merchandising produzido para acompanhá-los, são
realmente feitos com a finalidade primordial de servirem de
testemunho religioso e para a “edificação espiritual” dos
espectadores?... Eu, com todo respeito às experiências de outras
pessoas – e mesmo acreditando firmemente que toda e qualquer
experiência possa ser espiritual –, duvido disso! Por mais que as
obras possam, sim, ser utilizadas como instrumentos pedagógicos para
a espiritualidade de alguém, e por mais que o trabalho dos
participantes seja belo, agradável, inspirador e merecedor de
reconhecimento, a forma como essas obras muitas vezes são promovidas
pode contribuir para a espetacularização duma compreensão
literalista da tradição cristã – se foram divulgadas, como
muitas vezes o são, como expressão da “verdade da fé”.
A
diversidade do Cristo
A
observação aparentemente incompassiva que faço sobre esses tipos
de entretenimento relaciona-se com as diferentes compreensões que os
diferentes cristãos abraçam acerca de sua própria fé. Ela não
reflete uma verdade inquestionável; reflete, antes, minhas
percepções particulares. E as cito aqui por terem sido tema de
conversas que mantive esta semana com amigos e paroquianos. Tenho
sempre dito que a diversidade de compreensões na grande tenda da
tradição cristã é o que a torna fascinantemente bela para mim.
Essa diversidade é o que faz com que me refira a “Cristianismos”,
no plural, em vez de “Cristianismo”, no singular. As diferentes
tradições teológicas cristãs oferecem as mais variadas
compreensões acerca dos mais variados temas, incluindo os
concernentes à vida, ensinamentos, morte e ressurreição de Jesus –
temas tão importantes para as diferentes celebrações do calendário
da Igreja cristã, como a Páscoa.
Apesar
de ser um cristão unitarista – e, por isso, poder ser visto
pela maioria como um “heteredoxo” ou “herege” – e, assim,
não poder concordar com aqueles meus irmãos cristãos que chamam
Jesus Cristo de “Deus”, concordo com o que eles possivelmente
queiram dizer quando o identificam dessa forma. Como afirmado pelo
unitarista Rev. James Freeman Clarke, em 1841, em Jesus também
identifico uma manifestação de Deus. Nele encontro Deus
reconciliando o mundo a Si. Em Jesus encontro uma imagem do Deus
invisível que não encontro de forma tão explícita em ninguém ou
nada mais. Desta forma, as palavras, atos e caráter atribuídos a
Jesus Cristo são as palavras, atos e caráter [que atribuo à minha
compreensão] de Deus. Como um cristão, posso dizer que ver o Jesus
retratado pela Tradição é ver Deus [¹].
Nesse aspecto, pelo menos, como um unitarista, compartilho da fé
professada por cristãos de outras expressões – mesmo aqueles que
me acusam de heresia e/ou apostasia.
É
minha convicção que todas as nossas compreensões da Divindade só
podem ser parciais. Nossas ideias sobre Deus e sua relação com a
criação – o que inclui nossas ideias sobre Jesus – são
contextuais e relativas; isto é, dependem de quem somos e de nossos
contextos pessoais e/ou comunitários, sincrônica e diacronicamente
considerados [*].
Assim, se você tiver mais de 35 anos, como eu, já deve ter
percebido que suas compreensões acerca da Divindade – para não
citar aquelas acerca do mundo ao seu redor – mudaram ao longo do
tempo. Essas compreensões provavelmente emergiram do encontro entre
suas experiências com o Divino e as coisas que você aprendeu sobre
o mundo, das ideias teológicas/filosóficas/políticas/científicas
às quais foi exposto(a), das comunidades de fé às quais se juntou,
dos livros que leu, das pessoas com as quais conviveu ou conheceu,
dos desafios que enfrentou, enfim, das suas experiências de vida.
Por mais imutáveis que possam parecer nossas diferentes formas de fé
religiosa, elas, na verdade, não o são.
Além
dessa mutabilidade característica de nossas ideias pessoais, também
não se pode desconsiderar a mutabilidade das ideias ensinadas pelas
diferentes tradições de fé – o que inclui as diferentes
comunhões/denominações cristãs ao redor do mundo e ao longo do
tempo, em comparação com as demais e com as diferentes expressões
em seu próprio interior. Assim, nunca poderemos conhecer plenamente
todas as compreensões cristãs possíveis acerca da própria
tradição cristã – a não ser, obviamente, que sejamos
suficientemente arrogantes para supor que nossa expressão de fé
seja a única “verdadeira”, que apenas a nossa tradição seja “a
verdade” de Deus. Nós unitaristas tradicionalmente rejeitamos a
essa visão – e eu, pessoalmente, não tenho nenhuma simpatia para
com qualquer dogmatismo exclusivista, seja relativo ao(s) próprio(s)
Cristianismo(s), seja no que tange à sua relação com outras
tradições religiosas.
Jesus
vive e salva
No(s)
Cristianismo(s), a ideia de “salvação” relaciona-se diretamente
à pessoa de Jesus Cristo. Dependendo da compreensão que se tenha
sobre a identidade de Jesus e do sentido de sua morte e ressurreição,
se professará uma compreensão soteriológica – isto é, de
como ocorre/opera-se a “salvação”. Assim, não há uma visão
única do sentido da Páscoa cristã, como, por exemplo, o filme de
Mel Gibson ou as diferentes representações populares da “Paixão”
Brasil afora poderiam sugerir; há diferentes formas legítimas de
compreender Deus, Jesus Cristo, o Espírito Santo, a Páscoa, a
salvação etc.
O
falecido teólogo e professor Marcus J. Borg, sob quem tive o
privilégio de estudar e aprender muitíssimo, discute, num de seus
mais populares livros [²],
três das grandes tradições teológicas cristãs acerca da morte e
ressurreição de Cristo – discutidas pelo teólogo e bispo
luterano sueco Gustaf Aulen, num livro publicado em 1931 [**].
A primeira dessas compreensões, chamada, em latim, de Christus
Victor [Cristo Vitorioso], mantém uma relação com a
narrativa bíblica do êxodo e aponta como a mais importante obra de
Cristo sua vitória sobre aquilo que escraviza a humanidade,
incluindo o pecado, a morte e o “diabo”. A segunda é chamada de
substitutiva ou objetiva, para a qual a
morte de Cristo é um sacrifício que possibilita o perdão de Deus,
e na qual essa morte é enxergada através da narrativa
sacerdotal/sacrificial. A terceira, correlacionada à narrativa do
exílio, retrata a Jesus nem como alguém que triunfe sobre o que nos
escraviza nem como um sacrifício pelos nossos pecados, mas como um
revelador da verdade [***]
– isto é, como revelador de Deus, como luz que nos salva da
escuridão do exílio, de sua morte e ressurreição como uma
revelação do caminho de retorno, como uma revelação do “processo
espiritual interno que nos traz a uma relação experiencial com o
Espírito de Deus”; ou seja, Jesus é compreendido como a
encarnação do caminho de retorno do exílio. [³]
Não
é necessário um grande conhecimento de História da Igreja para
perceber qual conjunto de compreensões acima parece ser dominante
tanto no meio cristão quanto na compreensão que a sociedade como um
todo tem do(s) Cristianismo(s). A narrativa sacerdotal – aquela que
vê a morte de Cristo como um sacrifício necessário ao perdão da
humanidade por Deus, de forma substitutiva (em lugar de outros), isto
é, que Jesus teria carregado sobre si a culpa dos pecadores e
sofrido a pena que mereciam (a morte) – está explícita na maioria
das representações da morte de Jesus (nos hinos, nas declarações
de fé, nos sermões, nos filmes, nas peças teatrais etc). Apesar de
essa linguagem sacerdotal/sacrificial já estar presente no próprio
Novo Testamento, essa compreensão só se tornou dominante na Igreja
ocidental a partir duma obra escrita por Anselmo, Cur
Deus Homo?, de 1097. Ela resgata e cristianiza não apenas
as antigas ideias sacrificiais de tradições religiosas mais
antigas, mas também as ideias e linguagem do Direito Romano.
Obviamente,
a linguagem sacrificial e legalista utilizada para se referir ao
Divino em sua relação com a Criação – quando, por exemplo, se
afirma que Deus exigiria a morte dum inocente para que sua ira não
se voltasse contra a humanidade pecadora – é uma compreensão
legítima da fé cristã. Essa é, também, a compreensão oficial da
maioria das tradições cristãs ocidentais. Mas isso não muda o
fato de que, para mim, é uma compreensão repulsiva. Pessoalmente,
me recusaria a adorar uma deidade que expressasse “seu amor”
através da exigência de sacrifícios de sangue – e isso porque,
se esse fosse o caso, eu seria mais compassivo que essa deidade.
Logo, a linguagem metafórica do “sacrifício” e do “sangue”
não apela à minha espiritualidade nem à minha integridade
intelectual – independentemente de onde se encontre e de quem a
tenha utilizado. Tenho de utilizar outras imagens para me referir ao
meu encontro com o Divino.
Como
a metáfora do exílio é cara à minha compreensão do
Divino – porque apela às minhas próprias experiências de vida –,
você pode imaginar qual daqueles conjuntos de compreensões molda
minha visão daquilo que é celebrado na Páscoa. Como tenho afirmado
muitas vezes, compreender a fé cristã como uma Jornada ou um
Caminho é muito importante para a forma como compreendo e falo sobre
minha fé. Jesus, em minha compreensão, me salva não por ter
sido imolado como sacrifício por meus pecados, mas porque os
ensinamentos e as ações que lhes foram atribuídos me mostram o
Caminho para Deus, e guiam minha Jornada.
Esse
Jesus humano, que possivelmente experienciou muitas das limitações
e desafios que eu mesmo experiencio – independentemente de quão
factuais ou não factuais sejam os relatos a seu respeito –, é meu
Salvador por ser minha janela para a “face de Deus” e minha porta
para sua presença. É por isso que sou um cristão, é por isso que
celebro a Páscoa. Jesus é meu Salvador porque a tradição a seu
respeito faz com que queira abandonar minha indiferença ao
sofrimento de migrantes paralegais e refugiados. Ele é meu Salvador
porque as narrativas a seu respeito me fazem querer ser mais
preocupado com os que sofrem rejeição por não corresponderem às
minhas próprias expectativas. Ele é meu Salvador porque o que se
diz a seu respeito me faz crer que tenha materializado o amor à
humanidade de forma plena – e, assim, me ensina que essa é a única
forma de “amar” o Eterno.
Hoje
celebro a salvação oferecida pela companhia do homem Jesus em minha
Jornada rumo a Deus. Jesus, refugiado, pobre, rabino compassivo e não
sofisticado, profeta rejeitado, filho de Deus, Salvador de minha fé
e de minha relação com a humanidade.
Ele
verdadeiramente vive. Aleluia!
“Cristo
nasce em nós quando abrimos nossos corações à inocência e ao
amor. Cristo vive em nós quando caminhamos a senda do perdão,
reconciliação e compaixão. Cristo morre em nós quando nos
rendemos à nossa própria arrogância, egoísmo e ódio. Cristo
ressuscita em nós quando nossas almas se despertam da morte
espiritual para se unirem à comunidade de amor, para entrar no reino
divino aqui mesmo neste mundo. Saiamos em paz. Amém.”
Notas:
[*]
Considerar algo de forma sincrônica significa considerá-lo(a)
através de seus diferentes aspectos. Considerar algo de forma
diacrônica significa vislumbrá-lo(a) através do seu
desenvolvimento ao longo do tempo.
[**]
A tradução em inglês é referenciada pelo próprio Borg: AULEN,
Gustaf. Christus Victor. Tradução ao inglês de A. G.
Hebert. Nova York, EUA: Macmillan, 1969. [Originalmente publicado em
1931.]
[***]
Aulen a chamara de subjetiva,
mas Borg não concordava com a forma como o teólogo sueco a
descrevera.
Referências
[1]
CLARKE, James Freeman. The
Well-Instructed Scribe, or, Reform and Conservatism:
A Sermon Preached at the Installation of Rev. George F. Simmons, and
Rev. Samuel Ripley, as Pastor and Associate Pastor Over The Union
Congregational Society in Waltham, Mass. October 27, 1841. Boston,
EUA: Benjamin H. Greene, 1841. p.11.
[2]
BORG, Marcus J. Meeting Jesus
Again for the First Time:
the Historical Jesus & the Heart of Contemporary Faith. Nova
York, EUA: HarperCollins, 1994.
[3]
Ibid.,
p.128.